13 de janeiro, 2020

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Uma coisa que não me deixava estar calada

 

Há uma alegria que é a de estar vivo como cristão. Não se trata de um contentamento sem fim ou uma bonomia persistente. Compreende a capacidade para a dor. Pode estar ausente durante algum tempo, mesmo muito tempo. É um pequeno saborear da abundância de vida em que acreditamos e que anunciamos, a alegria daqueles que começaram a partilhar a própria vida de Deus. Deveríamos ter a capacidade de nos deleitarmos porque somos filhos do Reino. Podemos ter essa capacidade de nos deleitarmos porque somos filhos do Reino. O deleite é o caráter intrínseco da vida abençoada no Espírito.

A Jacinta, a menina de Fátima que há cem atrás recebeu o abraço da eternidade, diria que esta alegria é uma coisa cá dentro que não deixa calar. Não é espetáculo de um anúncio marcado por soundbites ou pelo volume ensurdecedor. Não é gargalhada fácil, mesmo que possa tornar-se riso alegre e sentido. É, antes, um sussurro quase sem palavras. Depois da primeira visitação da Senhora do Rosário e apesar de as crianças terem combinado guardar tudo em segredo, a Jacinta disse assim a sua alegria: «Que Senhora tão bonita!». É um balbuciamento irreprimível. É mais forte do que ela. É uma alegria nova que toma toda a sua existência ao ponto de ela não saber, não querer, nem poder ser de outra forma.

Há qualquer coisa de contraditório entre ser cristão e viver deprimido. Não se pode viver o evangelho mergulhado na melancolia. Simplesmente, porque não faz sentido. Ou antes, porque o evangelho nos implica de tal forma numa dinâmica de boa nova que, se somos coerentes, a vida mergulha num deleite profundo. Só alguém profundamente alegre pode ser um arauto credível da boa nova. Não me refiro a uma alegria superficial – como se o cristão devesse passar o seu tempo a dar palmadinhas nas costas e a impingir sorrisos a toda a gente e a dizer-lhes o quanto Jesus os ama (digamos que este é o tipo de coisas capaz de me deprimir profundamente). Mas há uma alegria profunda que pertence à nossa vocação de cristãos e que nos permite viver uma felicidade fundamental mesmo no meio do sofrimento mais atroz. É nosso credo que somos chamados a participar na paixão de Cristo e, portanto, a viver também as suas alegrias e dores e iras. É a alegria dos que vivem do evangelho.

Recordo que, quando um dos meus filhos nasceu, o hospital estava em obras. Nos corredores improvisados que tivemos todos de partilhar, andavam maridos preocupados e mulheres (muito) grávidas na iminência de darem à luz. O rosto preocupado dos maridos contrastava com os gestos de cuidado e carinho das grávidas, para quem, mesmo sabendo que dentro de momentos estariam em dores de parto, mesmo sofrendo já na carne as dores da dilatação e das ânsias, nada mais parecia importar do que aquele ser que germinava dentro de cada uma. Esta imagem ficou-me: das mães a acariciar os seus bebés quase a nascer, já em sofrimento, mas com um sorriso profundo, e dos pais atrapalhados, sem saber se deviam calçar as meias de plástico nos pés ou na cabeça. É dessa alegria que nos fala a boa nova. Aliás, a boa nova é precisamente a alegria de um nascimento. Encontrar essa coisa cá dentro que não posso calar é encontrar a razão de ser e de me dar. É um bom propósito de novo ano.

 

Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia

 (In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1168, 13 de janeiro 2020) 

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