13 de junho, 2020
Um sino tosco e uma capela pequena demais
O caminho até à aldeia faz-se entre os solavancos que os amortecedores do jipe não conseguem disfarçar. São duas horas de caminho desde a missão do Chinguar, lá no alto do planalto central de Angola. São duas horas de caminho porque não estávamos na época das chuvas. Há lugares do mundo onde as distâncias se medem com a paciência de querer chegar. Quando finalmente chegamos, já metade da aldeia nos esperava em frente à capela cor de terra. Uma fogueira aquecia água para fazer o pirão que se haveria de repartir depois da missa. A partilha do pão a convidar à partilha do pão (há de ser esta a multiplicação de que fala o evangelho). A capela era feita de tijolos feitos ali mesmo, com a terra e o capim e o suor das suas gentes. Um telhado de zinco, uma cruz pintada em branco por cima da porta, a palavra “Jesus” esculpida na parede interior e uma mesa tosca de madeira a servir de altar completavam a arte sacra que ali nos convidava a rezar. Faltava só entrar o povo que viria a ser toda a estética daquela liturgia. Perguntei ao padre a que horas começava a missa. Ele riu-se de mim a bom rir. Era óbvio que a missa começava quando estivéssemos reunidos. Não se pode pôr a mesa da eucaristia sem a comunidade reunida. E não há tempo marcado para Deus, porque todo o tempo é de Deus. A Deus o que é de Deus. Por isso, quando chegamos, o sacristão puxou de um bastão de ferro e começou a bater na grande jante da roda de um velho camião pendurada numa árvore em frente à capela. Aquele sino improvisado começou a dizer que a hora da festa tinha chegado e de todos os lados vi juntarem-se mulheres, crianças e homens que vinham Deus sabe de onde, como se nascessem da terra para aquele momento de ser igreja. Lembro-me de pensar que assim era. Nascemos para esta festa, convocados pelas badaladas abafadas de um sino improvisado. E ao som do sino que chama entramos naquela pequena capela feita de lama prontos para a alegria da festa de Deus. A alegria extravasava tanto quanto aquelas paredes não podiam conter a multidão. No caminho de regresso à missão, depois de umas quatro dezenas de batizados e três mãos cheias de casamentos, vinha o jipe cheio de pessoas (e galinhas e um cabrito que, da sua necessidade, o povo oferecera à missão) e eu pensava noutra pequena capela daquela terra, a da Senhora de Fátima no cimo do monte Tchimbango, a poucos quilómetros da missão. Que metáfora bonita da vida a que somos chamados. Do cimo daquele morro, a vista corta-nos a respiração, perdida num horizonte sem fim a toda a volta. Mas o peregrino sobe ao morro não para se perder no horizonte, mas porque o encontrou e quer fazer a festa de Deus na pequena capela daquele Santuário de Fátima. A capela é pequena demais para que ali se junte a multidão que vem Deus sabe de onde, como se nascesse da terra para aquele momento de ser igreja. Que as capelas da Senhora de Fátima se façam sempre pequenas é talvez sinal de que compreendemos a mensagem desta mulher que insiste em ser como o sino à entrada da capela cor de terra de uma aldeia perdida no planalto central de Angola. A capela pequena demais no cimo de um morro angolano chama à alegria de ser igreja. As ave-marias de quem sobe o monte são badaladas a convocar à festa. Que seja tosco o sino, que seja pequena a capela apenas confirma que a verdadeira festa habita esse horizonte de perder de vista que é o coração humano.
Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia (In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1173, 13 de junho 2020)
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