13 de dezembro, 2020

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Um Natal sem prendas?

 

Em 1985, uma fome terrível comia a esperança de milhares de pessoas no corno de África. Pelo mundo, entre distrações e indiferenças, havia gritos de alerta, fotos inquietantes e até um Live Aid que juntava as estrelas do Rock e da Pop a tentar abrir os olhos do mundo para as vidas que definhavam naquele canto esquecido do mapa. No advento desse ano, os meus pais sentaram os seus cinco filhos no sofá da sala num alinhamento que significava habitualmente que o assunto era sério. Não creio que tenha, então, compreendido toda a seriedade do que se passava na Etiópia, mas alguma coisa compreendi. O meu estômago de quase seis anos não sabia o que era a fome, mas eu intuía que o Natal das crianças naquele país exoticamente longínquo devia ser bem diferente do meu. Por isso, não me recordo de nenhuma mágoa quando os meus irmãos mais velhos concordaram com a proposta ousada dos meus pais de prescindirmos de prendas naquele Natal e de enviarmos o dinheiro para esse lugar no mapa que eu não sabia apontar, mas que imaginava ser um triste deserto de fome. Não me lembro também de sentirmos algum tipo de heroísmo na decisão. Era apenas e só um desejo de reconhecer como irmãos aqueles que não conhecíamos senão em fotos cobertas de fragilidade. Também eles eram chamados ao Natal. Se o Natal tinha sentido, eles também tinham de ser convidados. E creio que naquele pequeno coração de seis anos chegou a haver alguma alegria em partilhar.

Hoje pergunto-me como será o Natal em Cabo Delgado, aquela província do norte de Moçambique devorada estes dias pela ganância e pelo fanatismo, pela violência feita em nome de Deus àqueles que o louvam com outro nome. Pergunto-me se os cristãos que habitualmente se reuniam naquela igreja agora destruída, que já não é mais do que 4 paredes semidesfeitas, ali estarão na noite do dia 24 de dezembro, a celebrar o Deus incarnado e a esperança que ele dá, ou se fugiram já rumo a nenhures, deixando tudo para trás, quem sabe se até a própria esperança. Pergunto-me como será celebrar a certeza de que Deus se fez homem para nos salvar das dinâmicas do mal, quando se é perseguido e injuriado e a morte nos visita com a violência de uma catana e sentimos que a vida se equilibra num fio frágil de insegurança. Pergunto-me como será celebrar o Natal quando nos odeiam por querermos celebrar o Natal apesar de todos os apesares.

Mas se o Deus incarnado irrompe na vida do mundo é para dizer que há esperança nestas inquietações. É nestes apesares que ele incarna, neste fio frágil e inseguro da vida, mesmo perseguida ou faminta. O Natal é a certeza de uma presença, mesmo e sobretudo quando tudo em volta parece indicar o contrário, seja o ódio de uma guerra inútil e absurda, seja o conforto egoísta, igualmente inútil e absurdo. É o Deus-feito-frágil na nossa fragilidade a alargar o horizonte da nossa alegria e a incomodar com uma interpelação que nos descentra e nos desinstala.

No Natal sem prendas dos meus seis anos, em 1985, foi depois com espanto que, ao acordar, descobri que a partilha multiplica partilha. Alguém bateu à nossa porta manhã cedo, desaparecendo antes de a podermos abrir. Mas, ali, diante da porta, aquele amigo misterioso deixou um saco cheio de prendas, que davam e sobravam para cada um de nós. Os meus olhos de seis anos brilhavam com a alegria das prendas, mas sobretudo com a surpresa daquele dom. Ainda hoje não sabemos quem o fez. Hoje não me recordo sequer das prendas ali deixadas. Recordo apenas a alegria desta partilha multiplicada, dada e recebida, incarnada. E esta é uma prenda que me dá para a vida toda.

Hoje, gostava de ter um coração de seis anos para poder partilhar alegria com as crianças de Cabo Delgado e de tantas outras latitudes em que o Gloria in excelsis Deo é um louvor intercalado com a esperança (que não desilude) de um Maranatha! Vem, Senhor Jesus.

 

Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia

(In Voz da Fátima, Ano 099, N.º 1179, 13 de dezembro 2020) 

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