13 de julho, 2020
“Rezo para que no fim da pandemia não tenhamos a tentação de voltar a erguer muros. Somos todos homens e mulheres da mesma humanidade”
Fê-lo pela primeira vez e, nas duas vezes que se dirigiu aos peregrinos, lembrou que é tempo de dar graças por vivermos em Deus e que Fátima, bebendo na escola de Maria, nos ensina que a “graça de Deus não nos substitui” mas deixa-nos “encargos claros” de sermos “mais uns para os outros acabando com barreiras”. O prelado que coordena o Comité Local Organizador da Jornada Mundial da Juventude de 2023, em Lisboa, é o entrevistado da Voz da Fátima.
Quando e como começou a sua relação com Fátima? Gostava de começar por uma declaração de interesses nesta circunstância: exatamente há 20 anos eu e outros seminaristas de Portugal, de várias dioceses, trabalhávamos aqui no Santuário, acompanhando o programa “Um dia em peregrinação”. Para mim foi muito importante desenvolver esta missão entre 1995 e 2000. Foi, de facto, um primeiro encontro com o acontecimento, a história e a mensagem de Fátima de forma mais estruturada. E hoje, nesta circunstância especial em que estou aqui, emociona-me a recordação desse tempo. Sempre que peregrinamos, seja numa peregrinação física seja noutra dimensão como aquela experiência dolorosa que tivemos em maio, sempre que peregrinamos – dizia –saímos de nós e, por conseguinte, o objetivo é ficarmos melhor, mais santos de preferência.
É este o valor da peregrinação? Ao peregrinarmos a Fátima, peregrinamos a esse coração, a esse colo e a esse regaço maternal onde aprendemos o mais essencial da nossa vida. E quem diz as mães, que dão à luz, diz também aquelas mulheres que fazem parte da vida de tantos e que são também mães pelo seu amor, pelo seu testemunho de vida. Sobretudo se olharmos para estas dificuldades... tantas mulheres, em tantas responsabilidades que, a exemplo de Nossa Senhora, têm sido verdadeiras escolas de amor materno. O virmos cá, a Fátima, à casa da Mãe, é um vir à fonte, ao encontro do Senhor, porque é isso que Ela nos ensina: fazei tudo o que Ele vos disser.
Nossa Senhora há cem anos ofereceu o seu coração a Lúcia. De que forma, hoje, isso se pode traduzir na entrega que cada um de nós pode fazer em relação ao nosso mais próximo? A caridade é a nossa marca. No Hino da Caridade, a certa altura Paulo diz que a caridade não acaba nunca. É essa a marca que nos faz presentes no coração de tanta gente; é essa marca que aprendemos aqui em Fátima. O pedido de oração, esta fraternidade e corresponsabilidade por aquilo que é a salvação dos irmãos e das irmãs, por aquilo que não é meu, aprende-se muito aqui. E, quando vemos que há cem anos isso era dito, e vivemos uma pandemia em muito idêntica àquela que os saudosos Pastorinhos viveram, não podemos olhar com indiferença para nada.
Isso quer dizer exatamente o quê? O que não pode acontecer é que olhemos para esta pandemia como mais uma, até porque se olharmos bem para o momento atual quase que vivemos numa mudança epocal.
Uma mudança que continua muito focada no Ser Humano e no seu conhecimento... Nós vínhamos a falar das mudanças de tempo em razão das mudanças da tecnologia, da revolução do mundo digital e agora vemos que quando estávamos convencidos de que dominávamos a técnica e a ciência, e que ninguém nos apanhava, aparece-nos uma coisa “nanoscópica” e ficámos todos de joelhos. Ou seja, esta humanidade poderosa, de potências, dos donos da ciência, dos que controlam tudo e todos e nos vendem esperança bacoca, acaba por se ajoelhar diante de um território que ninguém controla. A natureza e Deus, ao longo da História, tal como o sal e a pimenta, vão-nos temperando mas sempre com o objetivo de que cada um de nós aprenda... E que aprenda que, diante de uma força maior, nada podemos. Por isso, peço e rezo para que estes acontecimentos, que são fraturantes da sociedade, nos ajudem a fortalecer. Tudo será diferente a partir daqui. Tem de ser.
Bem, o papa Francisco na Laudato Si já apontava para estas mudanças alertando-nos para o facto de nós necessitarmos de alterar os nossos comportamentos para podermos ter presente e futuro... Sem dúvida. Essa encíclica alerta-nos para a necessidade de uma ecologia integral e exorta-nos a dizer que a economia como existe, exclusivamente centrada no lucro, mata. Penso que estamos todos a perceber de algum modo isto. Perante os olhos e o coração percebemos que esta economia mata. E agora este vírus deixou-a em coma induzido. A questão que se nos coloca é o que queremos fazer a seguir, isto é: queremos voltar aos parâmetros anteriores, às receitas, aos critérios de gestão das famílias e das empresas tal qual tínhamos antes da pandemia ou queremos mesmo redescobrir uma economia que não mate e que cruze aquilo que é uma economia centrada no primado humano, em prol do bem comum?!...
E a Paz: qual é o lugar deste valor essencial para o qual Fátima chama tanto a atenção, não só no sentido de não haver guerra mas de haver mais fraternidade entre os Homens... Nós fomos habituados, e educados, numa redoma que nos defendesse dos problemas do quotidiano; daquilo que fosse morte, sofrimento, enfim, daquilo a que comumente chamamos de problemas e dificuldades. Fomos sempre protegidos porque fomos poupados. Isso fez de nós filhos da globalização da indiferença; já não somos capazes de chorar uns pelos outros. Fomos como que vacinados para não sofrermos com as tristezas nem partilharmos as alegrias. O que constatamos nestes meses de pandemia é que a redoma partiu e nós ficámos sem defesas. O muro que nos separava e poupava a realidades mais difíceis ruiu e nós ficámos completamente vulneráveis nesta fragilidade. Afinal, descobrimos que somos seres de barro. Toda a Humanidade está a reaprender a viver a sua humanidade. Achávamos que os pobres haveriam de se desenrascar e os ricos nada tinham a ver com o assunto e até estavam salvos, só por serem ricos. Rezo para que no fim da pandemia não tenhamos a tentação de voltar a erguer muros e a separar a fragilidade do poder, a riqueza da pobreza. Somos todos homens e mulheres da mesma humanidade. De outra forma pura e simplesmente não seremos. Dito de outra forma: ninguém pode ficar para trás e nós cristãos teremos de ser os primeiros a dar o exemplo. E há de ser nesta fragilidade que nos vamos reencontrar uns com os outros.
Até nisso há uma semelhança entre o contexto do acontecimento de Fátima e os tempos atuais... do que sabemos sobre a mensagem de Fátima, e daquilo que foi deixado por Maria aos Pastorinhos, o que podemos levar para o mundo a partir de Fátima? Nesta peregrinação conjuguei a graça e a misericórdia deste apelo à santidade. Daqui levamos esta ideia principal deixada por Maria de que a Graça de Deus não nos substitui e deixa-nos, pelo contrário, encargos claros. Em primeiro lugar, podemos não querer reconhecer que não podemos ir sozinhos na vida; mas, por outro, podemos reconhecer que este caminho faz mais sentido na corresponsabilidade. A graça não nos tira a liberdade mas com ela podemos permitir que a graça de Deus se opere em nós, na nossa vida e a consigamos levar aos outros. A isto chama-se aprender a ser santo; trabalhar para ser santo, não para estarmos num pedestal mas para levarmos aos outros a graça de Deus.
Isto é, na escola de Maria, que é Fátima, percebemos melhor o alcance da expressão do Papa Francisco sobre os santos de ao pé da porta. A santidade era e pode ser distante, mas só o é na exigência da sua vivência porque todos somos convidados a essa santidade e a vivê-la. Os Santos são homens do barro; é a santidade de classe média e nós podemos ser santos e isso é muito bonito... Ou seja, os santos não são super-heróis; os santos podemos ser todos nós, que também somos convidados a transformar o mundo através das obras de misericórdia. Somos nós homens e mulheres de barro, a que o Espírito Santo dá a vida, e que se transformam e, com essa transformação, transformam a vida dos outros. Aliás, aqui aprendemos, com Maria, como é que estas duas crianças foram capazes de aplicar, na simplicidade da sua vida, os ensinamentos da mãe do Céu.
Sendo a primeira vez que preside em Fátima o que espera levar desta peregrinação? Quero que Deus nos fale por Maria. O que vou dizer não será o mais importante. Não sei o que vou levar nem o que os peregrinos em geral vão levar; sei apenas que Deus dirá alguma coisa a todos e a cada um de nós, desde que estejamos disponíveis para O ouvir.
(In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1174, 13 de julho 2020) |