19 de junho, 2009
Congresso Francisco Marto Crescer para o Dom
Manhã de 19-06-2009
Como qualquer texto, para ser correctamente interpretado, há que conhecer o respectivo contexto. O mesmo se passa com o texto que é a vida do Francisco. Neste sentido, o Congresso neste segundo dia começou por olhar para os contextos histórico, social, político e eclesial da época das Aparições, contextos esses que envolvem e que ajudam a explicar ou a conhecer melhor a vida do pequeno vidente. Assim, foi demonstrado como a mundividência religiosa da época ultrapassa largamente no imaginário religioso a esfera do domínio institucional. Esta mundividência foi por sua vez contextualizada remotamente um século antes desde o tempo das revoluções liberais, passando pela crise do racionalismo e proximamente à época das Aparições pelo confronto agudo com a república emergente. Este percurso pretendeu mostrar como o próprio catolicismo desde a centúria de dezanove passou por um processo de desagregação e de posterior recomposição, ainda que não homogénea. Foi chamada a atenção precisamente para, ao contrário do que normalmente é referido e tido como dado adquirido, o clima mais favorável propiciado pelos novos movimentos republicanos e socialistas dos finais de novecentos, em claro distanciamento das tendências absolutistas e regalistas da monarquia constitucional e do próprio liberalismo que claramente pretendiam instrumentalizar a Igreja. A mundividência religiosa ao tempo das Aparições forçosamente estará marcada por este ambiente. Além disso, a revolução sidonista dos finais de 1917 não teve ainda eco nessa mundividência, não alterando substancialmente o clima em que as Aparições se dão. Nesse sentido, foram apresentadas como características mais marcantes do ano de 1917 no horizonte externo das relações entre a Igreja e o Estado o anticlericalismo e a laicização por parte de alguns sectores desse mesmo Estado, características depois vertidas em lei. A mundividência religiosa foi situada assim num processo de reconfiguração de uma nova fisionomia do posicionamento da Igreja perante o Estado e a sociedade. O mundo religioso da época está marcado por uma profunda crise de paz (apelo tão insistente na Mensagem de Fátima) devido às consequências que a partir de 1916 a guerra traz a Portugal, para além de 1917 assistir internacionalmente à implantação no poder de um regime ateu. Ficou claro que o catolicismo dos inícios do século passado é muito mais rico do que a sua vertente institucional, riqueza onde se inscrevem os Pastorinhos. A noção aguda da centralidade do mistério de Deus para o místico Francisco é sinal de uma sadia relativização do institucional e de uma profunda consciência da hierarquia das verdades da fé. Por outro lado, ficou também e evidente que o processo de recomposição por que passa o catolicismo desde novecentos conduzirá sobretudo à preocupação com o âmbito social de intervenção das comunidades cristãs, ganhando a acção católica junto das classes desfavorecidas produzidas pela revolução industrial um novo interlocutor e a Igreja novos interlocutores junto desses grupos através de grupos compostos por leigos que não se reviam em alguma da dita classe dirigente eclesial da época (alguma dela perfeitamente pares do reino). Aqui surgiu um nome – Abúndio da Silva – cujo livro O Dever Presente de 1908 editado no Porto na Figueirinhas não foi mencionado. Num segundo momento, foram apresentadas as formas mais comuns de devoção ao tempo das Aparições: missões populares, peregrinações à Virgem aos vários santuários marianos, exercícios de piedade, procissões, e uma forte reverência ao papado. Francisco encontra espiritualmente um mundo com uma grande intensidade afectiva (o que vai contra a piedade austera e intimista anterior) bem como uma procura exuberante pela visibilização pública, externa da fé contra a tendência a privatizar o fenómeno religioso e a fé. Neste contexto foram apontadas como práticas devocionais mais difundidas a adoração do Sagrado Coração de Jesus (ainda que à maneira da piedade seiscentista), o culto eucarístico com carácter reparador e penitencial (o que explica a prática da necessidade da comunhão frequente), a devoção mariana à Senhora do Rosário e à Imaculada Conceição sobretudo desde Lourdes. Posto isto, o Congresso estava em condições de dar o passo seguinte: abordar a espiritualidade da infância como fenómeno cristão e como possibilidade. Para tal foram colocadas à partida cinco questões que foram sucessivamente respondidas de modo muito objectivo e claro: 1) qual o sentido etimológico do termo “espiritualidade”? 2) existirá uma disponibilidade precoce na infância para a espiritualidade? 3) como conduzir a criança ao mistério 4) será viável a santificação de uma criança? E finalmente 5) que ensinamentos extrair para a dita espiritualidade dos adultos da espiritualidade da infância? Assim, o termo foi apresentado nas diversas acepções e precisado no sentido cristão como sendo aquele caminho a percorrer na presença do Espírito de Deus em nós. Fundamentando a segunda resposta em estudos da psiquiatria actual, a segunda questão foi respondida afirmativamente. Na criança, que não é um adulto em ponto pequeno (como foi salientado), existe uma propensão, um impulso natural para lá dos sentidos (assim foi designado), existe uma inclinação meramente natural, espontânea para ir além do mundo captado pelos sentidos. Mas foi justamente advertido que isto não se pode sem mais identificar com todo o processo de crescimento espiritual do dito mundo dos adultos. Esta inclinação na criança não conduz imediatamente a Deus, o processo não é automático. Para isso, foi chamado à colação o papel decisivo do meio como catalizador ou obstaculizador desse processo, desse caminho a percorrer na presença do Espírito do Senhor. Esta inclinação natural é apenas uma porta aberta pela qual há que entrar. O meio pode ajudar a abrir ainda mais ou a fechar essa porta. Cabe então ao meio ajudar a criança a fazer a experiência da transcendência. Mas mais uma vez foi advertido que transcendência no mundo infantil não é sinónimo de religioso. Significa tão-somente um acontecimento, uma experiência vital. Se o meio tem um papel decisivo, então foi encontrada o caminho para a terceira questão: a criança não pode ser levada de qualquer maneira para esse encontro, nem se pode suprir algum recurso. Assim, insistiu-se no facto que, visto tratar-se de um acontecimento e não de um discurso lógico, e não podendo ser ignorada a linguagem que a criança já possui, não bastam as palavras, mas são imprescindíveis os acontecimentos, os factos, os eventos. São necessários gestisverbisque (DV 2). Isto exige naturalmente um ambiente favorável para a transmissão da fé, um meio favorável, onde a família tem um exemplo insubstituível. Neste sentido, é então possível aceitar uma criança santa, a santificação de uma criança. Mas em que condições? A sua estrutura humana é já suficiente para tal? E o que se entende por santificação: dádiva ou conquista? O paradoxo foi colocado propositadamente como factor de reflexão para avaliar o papel do mundo psíquico neste acontecimento, neste processo, neste caminho a percorrer. A questão resumia-se a saber se o mundo psíquico se intromete ou não na acção de um Deus que por graça agarra por dentro o ser humano? Sendo o dom espiritual precisamente um dom então não depende do mundo psíquico. Daqui decorre que não existe uma aptidão psíquica para a santificação entendida como necessidade. Logo é possível que tenha sido possível ao Francisco. Deus não depende da condição psíquica humana para se manifestar. Deus pode agarrar o homem por dentro. Mas surgiu uma outra questão: não existirão condições? Foi concluído que de facto existirão condicionalismos. Finalmente, foram apresentadas algumas lições a tirar para a própria espiritualidade cristã no seu todo: a espiritualidade da infância ajuda a avaliar da seriedade de uma revelação particular, mostra como Deus prefere aqueles corações que vivem as virtudes da humildade, facultam a espontaneidade da vivência da fé, e mostram aos adultos que os seus dons serão comunicados à Igreja de maneira pública e universal, ao contrário de muito mundo adulto gnóstico que por vezes tende a esconder ou a assenhorar-se da graça de Deus. Com este exemplo e estímulo de espiritualidade, o Congresso investigou a educação da fé ao tempo das Aparições para melhor perceber a linguagem e a mundividência religiosa do beato Francisco. Foi evidenciada a influência do magistério de S. Pio X e do código de direito canónico de 1917 num forte impulso ao movimento catequético. Conclui-se no debate com os historiadores presentes que o catecismo usado pelos Pastorinhos foi o do Abade de Salamonde, que à boa maneira do catecismo de S.Pio X apresentava uma imagem formalista e longínqua de Deus, abstracta mesmo. Ora, o Deus do Francisco já está longe, é já um Deus que é conhecido a partir de uma experiência pessoal e concreta. Neste sentido, superou a imagem de Deus que os seus catecismos lhe transmitiram. Ficou, no entanto, por abordar a temática da consolação e o conceito teológico de reparação (tão presentes na sensibilidade e na experiência de Deus que faz o Francisco, bem como o timbre apocalíptico que ainda sobreviveu nessa experiência e na respectiva linguagem). Dr. José Carlos Carvalho |