20 de março, 2008
Servidores da Ternura e da Consolação de Deus
É uma hora de graça esta que nos é dado viver, juntos, na celebração da missa crismal, verdadeira festa da unidade da Igreja diocesana recolhida à volta do seu pastor. É um acontecimento de beleza e de ternura, de consolação e de alegria em que nos sentimos amados por Deus com um amor particular: aquele amor que nos alcançou e mudou as nossas vidas, fazendo de nós testemunhas humildes e enamoradas do Ressuscitado, ao serviço do nosso povo e de toda a família humana. Neste clima de beleza, de comunhão e alegria saúdo-vos, caros padres, com fraterna estima e sincera gratidão. Convosco saúdo jubilosamente e com gratidão o nosso estimado Vigário Geral, Pe. Jorge Guarda, que este ano celebra o dom de 25 anos de sacerdócio. Na Comunhão dos Santos recordo junto do Senhor os três irmãos sacerdotes que partiram para a casa eterna do Pai. E quero também enviar uma mensagem de afecto àqueles que deixaram de exercer o ministério.
Uma hora histórica única, decisiva e preciosa Desejaria começar esta nossa reflexão confidenciando-vos as primeiras impressões da Visita Pastoral que iniciámos. Tive assim a oportunidade de entrar no interior das comunidades onde fui acolhido como irmão. Procurei sentir o pulsar da vivência da fé e da vida espiritual de cada comunidade que visitei. Constatei uma boa reserva de muitas energias ao serviço do anúncio e da construção do Reino de Deus. Recolhi entusiasmos, alegrias, expectativas e esperanças, como também cansaços, desalentos, temores, e até sofrimentos interiores relativos à indiferença ou à apostasia silenciosa de muitos. Mas, sobretudo, verifiquei em todos, sacerdotes e leigos, um enorme desejo de um salto de qualidade: na vitalidade da fé e da vida espiritual, no serviço comum de evangelização, na reconfiguração das comunidades cristãs em ordem a uma maior participação e corresponsabilidade, no desejo de ser uma Igreja viva de comunhão e missão, que não se quer deixar envelhecer e acomodar. Há um desejo de “transfiguração” do rosto da Igreja a fim de que a beleza e a ternura do rosto de Cristo resplandeçam em cada comunidade, nos modos e nos métodos que somos chamados a seguir para viver, testemunhar e comunicar a fé no novo contexto social e cultural. É preciso um caminho que nos envolva a todos, ministros e todo o povo de Deus, e leve ao centro e fundamento da experiência cristã. É preciso um regresso às fontes originárias de todo o impulso e ardor apostólicos, que nos leve a sair da rotina, da repetitividade monótona, do uso banal e consumista do tempo, conscientes de que “não há duas horas iguais: cada hora é única, a única concedida naquele tempo, exclusiva e infinitamente preciosa” (Abraam Heschel). Também a hora histórica que nos é dado viver e em que somos chamados a exercer a nossa missão é única, decisiva e preciosa. É uma hora de “crise epocal”, um tempo de grave crise espiritual, moral e civil de fragmentação, de desencanto e desolação existencial que nos pode contagiar e abater o nosso ânimo. Mas Deus vem ao nosso encontro com o dom da consolação, que é outra face da ternura de Deus, como podemos verificar em toda a liturgia desta Missa Crismal. O óleo e o perfume da consolação O texto do profeta Isaías (61) é um verdadeiro canto da consolação e da esperança para o povo no tempo do exílio. Juntamente com o texto do Evangelho (Lc 4) é um compêndio de teologia do dom e da missão de consolação. O Servo, o Consagrado do Senhor é ungido “para anunciar a boa nova aos infelizes, curar os corações atribulados, consolar os tristes, levar aos aflitos de Sião uma coroa em vez de cinza, o óleo da alegria em vez do trajo de luto, cânticos de louvor em vez de um espírito abatido”. O Servo de Deus é o consolador que leva a confiança de Deus a um povo abatido que vive a experiência da desolação e do abandono. E Jesus, no Evangelho, identificando-se com este Servo, anuncia e torna presente a consolação divina aos pobres, prisioneiros, cegos, oprimidos e escravos. Ele é a Luz e a Consolação; é a presença da consolação no meio do seu povo; é a revelação visível, pessoal do eterno rosto consolador de Deus! O profeta Isaías para anunciar esta realidade superior às forças humanas serve-se de símbolos e imagens entre os quais se destaca o óleo. É uma imagem carregada de sentidos. Mas as suas várias significações (medicina, vigor, paz, alegria, consagração) podem sintetizar-se na consolação. É o perfume deste óleo da consolação que enche de solenidade a liturgia de hoje e dela parte para consolar, confortar inúmeras histórias de fé, de amor, de sofrimento, de entrega, de esperança e de vida, através dos sacramentos marcados pela unção: o baptismo, o crisma, a ordem e a unção dos enfermos. Portanto, a partir de Jesus consagrado com o “óleo do Espírito”, através de nós, bispos e presbíteros “participantes do ministério da salvação”, até todo o povo sacerdotal dos fiéis, o mistério da unção unido à Palavra, difunde um bálsamo de consolação, de conforto, de suavidade e ternura sobre toda a Igreja de Deus. A consolação da mente, do coração e da vida O nosso Deus é “Pai misericordioso e Deus de toda a consolação”. É seu atributo específico ser Consolador (cf. Is 52,1). A sua acção em nós é principalmente a de nos consolar e confortar. Ele quer a nossa paz, a nossa alegria, a nossa felicidade. Mas surge a interrogação: como é que o nosso Deus nos consola, nos assiste e infunde coragem? Pensamos imediatamente no belíssimo hino de S. Paulo que podemos fazer nosso: “Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação! Ele nos consola em toda a nossa tribulação, para que também nós possamos consolar aqueles que estão em qualquer tribulação, mediante a consolação que nós mesmos recebemos de Deus.” (2 Cor1,3-4). É uma passagem muito bela e tocante. O apóstolo sente-se consolado, vive fortes experiências de consolação no meio das tribulações e aflições da sua vida apostólica. Isto vale também para a nossa acção pastoral. A situação de ser consolado por Deus é, na verdade, típica da vida cristã. Se o Senhor nos deixa passar através de provações, não deixa porém que nos falte consolação e conforto. A consolação divina é como uma mola poderosa para o nosso caminhar, para “voar” nos caminhos da santidade e da pastoral porque “dá asas aos pés”, segundo a expressão de Santo Inácio de Loyola. Em que consiste esta consolação? Na linha da espiritualidade inaciana desejaria exprimir três modos típicos - que são três graças -, com que o Senhor nos consola no nosso tempo: 1- A consolação da mente, hoje tão fragmentada e dispersa, sem pontos de referência É uma espécie de luz (iluminação) que nos oferece uma visão sintética, unitária e mística do admirável desígnio de Deus e da história da salvação, tal como aos discípulos de Emaús; um conhecimento íntimo que nos permite intuir, num único olhar, a riqueza, a harmonia, a coerência e a beleza dos conteúdos da fé; que nos concede ver com claridade, a certeza, a confiança absoluta e a beleza da vocação, do carisma e da missão que nos são confiadas; que nos dá a capacidade de ver e julgar, à luz de Deus, as realidades humanas e divinas e os sinais dos tempos. Quem recebe este dom compreende com que imenso amor Deus abraça o mundo e como a pequena história de cada um, com os seus acontecimentos mesmo dolorosos, tem significado e valor dentro da grande história da salvação. Isto é de grande importância para quem tem responsabilidades na Igreja, porque o ajuda a pensar em grande e a pensar positivo mesmo no meio de circunstâncias pequenas e mesquinhas. Por vezes, ainda sentimos a dificuldade em pensar numa visão grande e positiva. Sentimos que é mais cómodo encerrar-se em horizontes estreitos e mesquinhos e viver neles com amargura e lamentações. A consolação da mente mostra-nos que não é este o desígnio de Deus. 2. A consolação do coração, hoje tão ferido, dividido e insatisfeito É a inclinação afectiva a crer no Evangelho, a confiar e a confiar-se ao mistério do infinito amor de Deus por cada um de nós, porque é bom e belo, dá paz interior e alegria. “É como um raio de felicidade de Cristo ressuscitado e glorioso que ilumina e aquece o coração” (C. Martini). É Deus que chega com a sua consolação à intimidade mais profunda da pessoa, ao seu coração, lugar dos sentimentos, dos afectos e das decisões profundas. E purifica o coração e a memória, reconcilia o próprio consigo mesmo e os seus limites, com os outros e com Deus; abre-o ao amor verdadeiro, puro e casto; liberta-o da impaciência, da frustração, da solidão, da desolação, do desespero. Dá serenidade e abre-o à esperança que não defrauda, mesmo nas circunstâncias mais difíceis. “Quem tem fé, nunca está só” (Bento XVI). 3.Consolação da vida, hoje tão ameaçada pelo medo e pela insegurança É uma força interior que nos ajuda a prosseguir, com coragem e perseverança, no autêntico caminho da vida, mesmo quando está semeado de obstáculos ou quando tudo parece confuso e perdido. Sim, a presença do Senhor, a Sua companhia dá-nos uma força superior, humanamente inexplicável, que nos permite resistir nos dias mais difíceis, como tão bem expressa o salmista: “O Senhor está comigo; com Ele a meu lado, não vacilarei”! Ou então com o hino de Completas: “Se me envolve a noite escura e caminho sobre abismos de amargura, nada temo, porque a Luz está comigo”! Penso também na famosa parábola das “Pegadas na areia” tão elucidativa. No início, são quatro pegadas (as de Jesus e do amigo a seu lado). A um certo ponto ficam só as duas pegadas do amigo. Mas quando o amigo pergunta a Jesus onde estava nos momentos mais difíceis, ouve a resposta surpreendente: nessa altura, levava-te eu nos braços. Mesmo quando parece que somos abandonados por Deus, Ele continua a caminhar connosco, a levar-nos nos seus braços. Como é importante esta confiança no caminho da Igreja e na vida pastoral nos tempos mais difíceis! Esta consolação da vida traduz-se hoje na confiança na vida, na bondade e na beleza da vida, de que tanto precisa a nossa sociedade e a nossa cultura. Sede servidores da ternura e da consolação de Deus Neste tempo difícil que vivemos, considero muito importantes estes três tipos de consolação para o nosso ministério e para as nossas comunidades. Hoje, o mundo está cheio de motivos que levam ao temor, ao medo, ao desencanto, à confusão e desorientação, à desolação, à angústia e à depressão. E as pessoas esperam, avidamente, dos sacerdotes o testemunho da consolação, do conforto. A própria vida cristã e pastoral está sob o signo da consolação e da ternura, porque está sob o signo do Amor eterno, santo e compassivo de Deus e do desejo de comunicá-lo aos outros. O Senhor, Pai de misericórdia, faz cair a consolação como bálsamo gota a gota. Também nós, com Ele, podemos fazer do mesmo modo, sem qualquer presunção. A nossa sincera participação nas fadigas e cansaços do nosso povo, nos sofrimentos da gente é garantia de que estamos com o Senhor; de que podemos servir o óleo da consolação porque, em primeiro lugar temos necessidade dele e o invocamos de Deus, particularmente neste dia, pedindo-lhe que reavive o dom que está em nós. A Sagrada Escritura apresenta-nos figuras de curadores feridos, de consoladores aflitos, de médicos carregados com as doenças dos outros, de curadores de chagas chagados. À semelhança de S. Paulo que se considera consolado para consolar, sede servidores da ternura e da consolação de Deus! É o vosso serviço aos irmãos: ser aquele que acompanha, apoia, estimula, consola, dá motivações, indica metas justas, abre horizontes para infundir força e conduzir a Cristo, mostrando que a graça de Deus, a mão do Senhor nos acompanha. Significa também que devemos semear calma, sentido de objectividade, capacidade de olhar as coisas a partir do Alto e ao longe, promover em toda a situação a reconciliação, a conversão dos corações, o bem comum. Trata-se de uma sementeira paciente, perseverante e capaz de esperar os frutos quando Deus quiser. Vacklav Havel, grande escritor e homem político, exprimiu assim os sentimentos que nos devem animar no tempo da provação: “Eu queria fazer progredir a história à maneira de uma criança que puxa uma planta para a fazer crescer mais depressa. Creio que é preciso aprender a esperar... Semear pacientemente o grão, regar assiduamente a terra que o cobre e conceder às plantas os seus tempos. Se os políticos e os cidadãos compreendessem que cada coisa, neste mundo, tem os seus tempos e que, para além do que se espera do mundo e da história, é importante saber o que o mundo e a história esperam, então a humanidade não acabaria tão mal como às vezes imaginamos... Não há nenhuma razão para ser impacientes, se se semeou e regou bem. Basta compreender que a nossa actividade não está privada de sentido. É uma actividade que tem sentido porque nasce da esperança e não do desespero, da fé e não da desconfiança, da humildade perante os tempos deste mundo e não do medo”. Ó Maria, Mãe da ternura e da consolação, intercede por nós para que nunca nos falte a consolação da mente, do coração e da vida, que sustenta a nossa fé, a nossa esperança, o nosso amor e o nosso ministério. Ámen! Leiria, 20 de Março de 2008 † António Marto, Bispo de Leiria-Fátima |