01 de março, 2012
Teóloga, docente e investigadora da Universidade Católica Portuguesa, Isabel Varanda preside à Comissão Organizadora do Simpósio teológico-pastoral agendado para 15 a 17 de Junho de 2012, no Centro Pastoral de Paulo VI, no Santuário de Fátima, entidade que promove a iniciativa. Em entrevista à Sala de Imprensa do Santuário de Fátima, Isabel Varanda reflete sobre a temática do simpósio, transpondo a sua proposta de leitura para os dias de hoje, e apresenta a dupla vertente - teológica e pastoral – da iniciativa. “A pergunta (Quereis oferecer-vos a Deus?) corre o risco de ficar sem resposta num tempo de desapego, de esquecimento e de abandono de Deus. O Deus de Jesus Cristo está ao abandono; abandonado pelo mundo e abandonado pela sua família mais chegada: os cristãos. A própria Igreja de Jesus Cristo dá a ideia, muitas vezes e de muitos modos, de ter Deus ao abandono, gastando as suas energias supostamente com as coisas de Deus, mas esquecendo Deus. Ousaria dizer que a Igreja de Jesus Cristo está num processo de secularização de si mesma”, refere Isabel Varanda. A presidente da Comissão Organizadora apresenta os propósitos desta iniciativa que integra o segundo ano do percurso até ao Centenário das Aparições e fala sobre o “crescente despertar” da sua sensibilidade, da sua razão e da sua fé para a mensagem de Fátima. “Pode dizer-se, de forma sintética, que o principal propósito do Simpósio 2012 é investigar, pensar, meditar, metódica e sistematicamente, a questão da oferta de si a Deus, no mundo e na vida, hoje. Que fundamentos? Que sentido? Que pertinência? Que possibilidades? Que equívocos? Que lugares? Que horizontes? Que exigências? Que responsabilidades? Que futuro?”, sintetiza. A entrevista, por LeopolDina Simões, da Sala de Imprensa do Santuário de Fátima: 1 - Com que sentimento recebeu o convite para presidir à Comissão Organizadora do Simpósio Teológico-Pastoral promovido pelo Santuário de Fátima para este ano? Em 2011 tive o privilégio de integrar a Comissão Organizadora do Simpósio “Adorar Deus em espírito e verdade”, promovido pelo Santuário de Fátima e à qual presidiu o professor da UCP e padre da Diocese de Leiria, doutor Vítor Coutinho. A experiência foi, já então, muito relevante. Para além do crescente despertar da minha sensibilidade, da minha razão e da minha fé para a mensagem de Fátima, as exigências científicas e a mobilização de recursos diversos, que o desenho de um tal projeto comporta, tornaram-se ocasião de importante enriquecimento e de estímulo a habitar mais intensamente os lugares teológicos, antropológicos e mesmo cosmológicos em que o lugar de Iria se transfigurou ao longo dos últimos 100 anos. 2 - Como está a ser a experiência? Neste momento, já estamos na fase da divulgação oficial do Simpósio teológico-pastoral, que terá lugar de 15 a 17 de Junho de 2012. Recuando alguns meses, lembro a minha total surpresa diante do convite, inesperado para mim, de presidir à Comissão Organizadora do evento. Escutei, em silêncio, o convite que me era dirigido; senti uma grande serenidade diante do voto de confiança que o Santuário de Fátima generosamente me concedia e, simultaneamente, senti a responsabilidade com que, aceitando, me obrigaria a corresponder. Escutei o convite em silêncio comovido, confesso; por mim e por todas as mulheres do mundo, tantas vezes preteridas, desclassificadas e discriminadas diante da possibilidade de ocupar cargos públicos e desempenhar funções de gestão ou de direção. Alegrei-me com o rasgo de modernidade e, ousaria dizer, de liberdade cristã, manifestado pelo Santuário de Fátima neste convite. Estas impressões mais íntimas foram importantes na tomada de decisão; também importante foi o facto de podermos continuar a contar com a experiência acumulada e o saber do doutor Vítor Coutinho, que aceitou, generosamente, integrar a Comissão do Simpósio. Assim, no final de Setembro de 2011, a comissão organizadora teve a sua primeira reunião para pôr em marcha o projeto. A singular estatura intelectual e de fé de todos os membros da equipa e a generosa e competente responsabilidade e empenho fizeram com que o trabalho de coordenação geral fluísse de forma sustentada e partilhada. É bom, uma honra e uma sorte trabalhar assim. 3 – O que desejam para este simpósio? Desejamos que, à semelhança dos simpósios anteriores, o simpósio teológico-pastoral 2012 possa ser um importante evento para a Igreja de Jesus Cristo em Portugal. Esperamos que seja mais uma ocasião de convergência das atenções para Fátima, onde se reza, se canta, se chora, se suplica em celebrações contínuas da fé, mas também onde se desenvolve uma importante vertente de investigação antropológica e teológica, de rigoroso aprofundamento da mensagem de Fátima e de leitura contemporânea dos acontecimentos que há quase um século revelaram um céu novo sobre a Cova da Iria. 4 – Qual o fator inspirador para este simpósio teológico-pastoral? O simpósio teológico pastoral 2012 inscreve-se no programa pastoral e litúrgico do Santuário para o ano de 2012. Este mesmo programa inscreve-se, ainda, num itinerário mais vasto a percorrer até 2017, data comemorativa do Centenário das Aparições. Destas, vai-se destacando, ano a ano, um acontecimento de referência. O ano pastoral 2012 centra-se na primeira aparição de Nossa Senhora, em Maio de 1917, e elege, como elemento inspirador, a pergunta que os pastorinhos de Fátima escutaram vinda do Alto: “Quereis oferecer-vos a Deus?”. Pergunta dirigida aos pastorinhos há 95 anos e que hoje assume, explicitamente, uma mais vasta abrangência de destinatários: crentes, agnósticos, ateus, todos nós alguma vez na vida nos interrogamos sobre Deus e sobre a relação (im)possível com Ele. Os crentes acolhem com facilidade a pergunta, mas não é por isso que a resposta é mais óbvia ou mais fácil. Para os não crentes, não pensamos que a pergunta seja chocante; alguma vez na vida será formulada, solicitando uma tomada de posição: pró, contra ou de mera indiferença relativamente a Deus. Para todos, a pergunta desdobra-se na questão de perceber como se integra na narrativa biográfica de cada um o dado antropológico universal, que a própria biologia ilustra: o dom é a fonte da vida, de toda a vida na sua extensividade – todas as criaturas visíveis e invisíveis que habitam o cosmos – e na sua intensividade singular – cada criatura no seu ser único e irrepetível. A esta luz, o propósito do Simpósio desenha-se numa dupla vertente: teológica e pastoral. Por um lado, elege-se a questão “quereis oferecer-vos a Deus?” como núcleo de convergência das interrogações comuns a todos os humanos, ligadas ao sentido da vida, à busca de um fundamento, ao modo de habitar o mundo e ao estatuto da relação possível com Deus. Com este questionamento pretende-se, por outro lado, identificar pontos de luz – heurísticos e hermenêuticos – com os quais se passe à consideração prática e concreta dos horizontes contemporâneos da entrega de si, na sua claridade como nas suas sombras. Pode dizer-se, de forma sintética, que o principal propósito do Simpósio 2012 é investigar, pensar, meditar, metódica e sistematicamente, a questão da oferta de si a Deus, no mundo e na vida, hoje. Que fundamentos? Que sentido? Que pertinência? Que possibilidades? Que equívocos? Que lugares? Que horizontes? Que exigências? Que responsabilidades? Que futuro? 5 – A propósito do título do simpósio, a pergunta feita por Nossa Senhora em Fátima, é a mesma que o Anjo Gabriel lhe havia colocado na Galileia. A resposta dada pelos videntes e por Maria - “Sim” -, o sim da entrega à vontade de Deus, lembra a resposta que o próprio Cristo deu ao Pai: “Faça-se em mim a Tua vontade”. O Pai Nosso recorda-nos também essa resposta sempre que o rezamos: “Pai Nosso, que estais no Céu; santificado seja o Vosso nome; venha a nós o Vosso reino; seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no Céu”. A pergunta de Deus é colocada também à humanidade? Vou tentar responder a uma pergunta tão complexa de forma simples e o mais diretamente possível. Importa, em primeiro lugar, perceber o que queremos dizer quando falamos em vontade de Deus. Qual é a vontade de Deus? Que Deus é este que tem vontades? A palavra vontade é usada aqui como sinónimo de desejo? O que deseja Deus? Que nos ofereçamos a Ele? Por quê? Para quê? Que Deus é este que nos quer para Ele? Será que nos situamos aqui no coração de um conflito de vontades: a de Deus e a do ser humano, enquanto criatura capaz de responder de forma livre e direta a Deus? Parafraseando santo Ireneu, no século II da era cristã, diríamos que a vontade de Deus é que as suas criaturas se conheçam e se reconheçam na sua dignidade de criaturas de Deus sobre quem nenhuma criatura tem poder e como seres chamados e capazes de aceder a uma plenitude de vida sobre a qual nem mesmo a morte tem a última palavra. Em rigor, a vontade de Deus é que nos deixemos amar por Ele, o que significa, no fundo, deixar Deus ser Deus e desejar que Deus seja connosco. Incessantemente ressoa pelo universo fora a pergunta do Criador dirigida a todas as criaturas e a cada uma em particular: Deixas-me amar-te? Queres oferecer-te ao meu amor? Aceitas referir – mesmo que não saibas bem como – a tua vida e o sentido da tua história pessoal ao meu sonho de vida eterna em plenitude com e para todas as criaturas? A jovem Maria de Nazaré disse sim. Jovem em idade, mas madura na fé e na compreensão do sentido fundamental da vida, Maria soube oferecer a sua vida a Deus, para que, através dela, o mundo O conhecesse melhor. Os três pastorinhos de Fátima, crianças em idade, mas maduros na fé e na compreensão do sentido fundamental da vida, encontram na “linda Senhora” que lhes fala, inspiração para também dizerem: “Sim, queremos!”. A resposta que soubermos e pudermos dar a esta questão configura, sem dúvida, o nosso modo de ser e de estar no mundo. Deus só quer que sejamos felizes e que não nos resignemos a morrer pela morte, antes aprendamos a viver, morrendo pela vida. 6 - Jesus é o fundamento desta entrega de si que é pedida à humanidade? Sim, eu creio que Jesus Cristo é o fundamento. Jesus Cristo, verdadeiramente Deus – todo divino, e verdadeiramente homem – todo humano, é a plenitude da revelação: revelação total de Deus e revelação total do ser humano. Como escreve João Paulo II na sua primeira encíclica Redemptor Hominis, Jesus Cristo revela o Homem ao próprio Homem. Por Cristo, com Cristo e em Cristo, entramos na profundidade do mistério da vida e da vocação última de cada um de nós, ser filhos no Filho. Não é verdade que sem esta dimensão de filialidade, o ideal de fraternidade não tem fundamento nem sustento? Deus dá-se a conhecer em Jesus Cristo como omnipotente amor e como infinito amor. Esta é a identidade do Deus de Jesus Cristo: Amor. Amor de paixão por todas as suas criaturas. Jesus Cristo, o Filho de Deus, entrega a sua vontade à vontade do Pai. A vontade do Filho é a vontade do Pai: amar, dando a própria vida se necessário for, para que os outros vivam. A morte de Cristo na cruz – oferta total e radical de si – ensina-nos que dar a vida por amor – nos pequenos gestos do quotidiano, como no limite da cruz – não mata, antes conduz ao coração da verdadeira vida. Daquela cruz definitiva, sem reversão possível, jorra pelos séculos sem fim a promessa de que nenhum crucificado fica pregado na cruz. Pela forma como Cristo Jesus viveu a sua humanidade e à luz do mistério da sua Cruz compreendemos que Deus não criou o ser humano para morrer e que “ a vitimação dos inocentes é intrinsecamente má”. Cristo Jesus assume, atravessando, essa situação da existência humana. A sua ressurreição é a realização antecipada da nossa própria esperança e o fundamento da confiança de que o Pai que ressuscita o Filho não permitirá que a morte retenha uma que seja das suas criaturas. 7 - Referiu recentemente que a pergunta “Quereis oferecer-vos a Deus?” “concentra em si os alicerces e as dinâmicas essenciais da fé cristã”. Por que terá Deus sentido esta necessidade de repetir a pergunta em Fátima? Penso que a estrutura essencialmente dialógica e relacional que subjaz e dá consistência à questão “Quereis oferecer-vos a Deus?” nos conduz à essência da vida de fé em Deus. Ela concentra, de modo admirável, a vocação transcendente do ser humano e ilumina, de forma excelente, esta competência inata do ser humano para pensar Deus e se relacionar com Deus com vínculos de fé, de esperança e de amor. Santo Agostinho, no século VI, dizia que o ser humano é capax Dei. A pergunta “Quereis oferecer-vos a Deus?”, diz-nos, em primeiro lugar, que o ser humano é capaz de Deus, mas também nos diz, simultaneamente, que Deus é capaz do ser humano. Diz-nos ainda que o Deus a quem os cristãos dão a sua fé, a sua esperança e o seu amor, é um Deus que cria criaturas livres, “capazes de o negar”, diz Emmanuel Lévinas, e de “discorrer livremente”, diz John Haught. Deus respeita a liberdade das suas criaturas. Daí o sentido interrogativo e não imperativo da questão. Indo diretamente à pergunta: aceito que pergunte “porque terá Deus sentido necessidade de repetir a pergunta em Fátima”, embora me pareça que não seja uma pergunta sustentável nem quanto à forma nem quanto ao conteúdo. Aceito, no entanto, os desafios que a estes níveis comporta, esperando poder ir um pouco mais longe do que a mera desconstrução de uma formulação. 8 – O que é então importante? Assim, por um lado, creio que é importante termos presente que Deus não é redutível aos nossos conceitos e que a nossa linguagem falada ou escrita é insuficiente e pobre para dizer Deus. Isto dito, em Deus não há lugar para necessidades, pelo menos à maneira da nossa própria experiência do que é a necessidade. Por outro lado, não creio que Deus tenha tido mais necessidade de repetir a pergunta em Fátima do que noutro lugar do mundo. A pergunta de Deus ressoa desde toda a eternidade em todas as altitudes e latitudes, nos lugares mais conhecidos como nos mais inóspitos, no planeta terra como nas profundezas do universo: Eu sou e estou aqui para vós. Quereis-me? É esta oferta de si – este dom total e absolutamente gratuito de si mesmo, que se oferece à hospitalidade – que justifica a pergunta: queres tu oferecer-te a Deus? Ou, dito de outro modo, queres fazer lugar para Deus na tua vida e deixar que Ele entre na tua casa e se sente à mesa contigo e tu com Ele (Ap 3,20), na intimidade familiar do teu lar? Pergunto-me se não será esta a forma mais primeira e adequada de compreender a oferta de si a Deus. Creio que a decisão de acolher o dom de Deus, dom que precede qualquer iniciativa da nossa parte, coincide perfeitamente, em linha de correspondência, com a decisão da oferta de si a Deus. Acolher o dom de Deus e dar-se a Deus aparecem, assim, como dois movimentos ou duas dimensões fundamentais de uma relação possível entre Deus e o ser humano, fundada e alimentada no dom, na liberdade, no respeito e no amor incondicional. Na Cova da Iria, Francisco, Jacinta e Lúcia estavam disponíveis para acolher o dom de Deus. Ousamos dizer, que ansiavam por que tal acontecesse. Que Deus viesse ao seu encontro e que eles o percebessem. Nesta disposição, eles puderam responder, com confiança, com alegria e sem hesitações: Sim, queremos. Queremos oferecer a nossa vida a Deus, ou seja, queremos acolher na nossa vida o dom de Deus, o dom que é Deus. Este acontecimento singular, personalizado na vida de fé de três crianças e localizado num espaço e num tempo, fala-nos hoje, com pertinência e atualidade, particularmente através da pedagogia da fé que os pastorinhos souberam construir e viver no diálogo pessoal com Deus, com Nossa Senhora e com os Anjos de Deus. Eles são, para o nosso tempo, três importantes pedagogos da fé. Em Deus não há lugar para o esquecimento 9 - O ser humano lembra-se mais de Deus em épocas de crise e de conflito ou é Deus que se lembra mais do ser humano nessas alturas? Em Deus não há lugar para o esquecimento. Em Deus não há lugar para o afastamento. “Eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos” (Mt 28,20). Deus acompanha todas e cada uma das suas criaturas, sustentando-as com o seu sopro de vida. Não é possível pensar Deus, sem O pensar Deus connosco, Deus para nós. Então, não creio que se possa falar de uma maior ou menor atenção da parte de Deus em função das necessidades humanas. Deus está aqui, ponto final. Na dor e na alegria, no absurdo e no sentido, na confissão e na negação, no pecado e na graça, Deus acompanha-nos para onde formos, aceitando sem reservas correr o risco da nossa liberdade. Aquele que crê em Deus não é solitário; mesmo na mais absoluta solidão humana, nunca está ou estará só. Deus está aí como companheiro fiel, aconteça o que acontecer, custe o que custar, mesmo deixando-se matar, se necessário for. Não foi o que aconteceu há dois mil anos? Jesus Cristo, o Filho de Deus, morre na cruz, arrastado pelo pecado humano. Seria muito importante que a teologia, a espiritualidade cristã e a pastoral procurassem iluminar mais este modo de ser de Deus, contribuindo assim, para minimizar o risco de fazermos de Deus uma utilidade, um deus à medida das nossas necessidades e frustrações. Caricaturamos facilmente Deus, esperando que seja bombeiro, socorrista, um mágico que resolve os nossos dramas no sentido que desejamos e que pedimos. Pobre Deus e pobres de nós, homens e mulheres de pouca fé! Os acontecimentos da vida vão-nos mostrando que, de facto, em tempos de crise e de conflito, o ser humano lembra-se mais de Deus. Mas não é só para o reconhecer como presença fiel e amparo providente nos momentos de aflição; Deus é muitas vezes lembrado para ser descredibilizado e para ser negada a sua existência e bondade. “Deus não existe, se existisse não teria permitido tal tragédia”, ouvimos tantas vezes. A questão é demasiado séria e complexa para ser abordada em duas linhas. Deixo, simplesmente, a certeza da fé no Deus-connosco, no Deus que acompanha a nossa liberdade, que acompanha o nosso fazer e que alimenta a nossa busca de sabedoria para fazer face, com serenidade e determinação, aos imponderáveis de um mundo e de uma vida que “discorrem livremente”. 10 - O que pretende Deus da humanidade, a quem deu essa liberdade de escolha e de decisão? Que viva feliz e que caminhe incessantemente para a realização plena e, com ela, todas as criaturas visíveis e invisíveis que habitam o cosmos. Que escolha o bem e que todos os ideais e esforços da liberdade humana visem a construção de um mundo novo, uma nova terra e um novo céu, onde não haja qualquer vestígio de morte. 11 – A adenda ao título do simpósio “Horizontes contemporâneos da entrega de si” significa uma proposta de análise ao que existe ou uma proposta de um caminho para o mundo? As duas perspetivas são justas. Com efeito, uma proposta de análise das concretizações da entrega de si hoje poderia ser mais adequadamente expressa através, por exemplo, do conceito de lugar. A concretização do título do Simpósio poderia ser, neste sentido, lugares contemporâneos da entrega de si. Pareceu à comissão organizadora que a expressão horizonte sintoniza melhor com a questão em título. A pergunta “Quereis oferecer-vos a Deus?” inaugura um caminho de escuta, de consideração e de decisão, desenhando pelo menos três horizontes possíveis de resposta: horizonte da recusa, horizonte da aceitação; horizonte da indiferença. Neste tempo, a que muitos já chamam tempo do humanismo secular, a oferta de si pode não ter qualquer tradução para lá do horizonte da estrita imanência. Haverá lugar, ainda, para perspetivar a entrega de si na linha de abertura a um possível horizonte de transcendência? Eis uma das questões que o simpósio pretende trazer para o coração da reflexão e do debate. 12 - No texto em que apresenta o simpósio refere que “a questão ´Quereis oferecer-vos a Deus?´ não é, hoje, claramente, uma questão confortável”. Não é confortável em que sentido? Que sentido e acolhimento pode ter tal interpelação numa época em que as novas gerações têm crescido e recebido uma educação centrada no ter e no receber? Hoje ninguém dá nada a ninguém. Se já nem sabemos o que é dar, oferecer, entregar gratuitamente, com que disposição e com que suporte poderemos pensar a possibilidade do dar-se, a possibilidade da oferta de si? Oferta, ainda elevada a um patamar mais radical: oferta de si a Deus?! A questão é, no mínimo, desconfortável, não lhe parece? Se me permite, gostaria de ainda dizer o seguinte: o neo-liberalismo global propõe ao ser humano “conformar-se às exigências da realidade económica” como chave para o desenvolvimento e a realização. As nossas vidas parecem, assim, chutadas entre duas balizas: a da exigência e a da sujeição. O árbitro e os fiscais de linha estão atentos aos lances fora de jogo: anulados, não contam. Parece-me que esta imagem ilustra bem a bolha neo-liberal e o processo de sujeição metódica – lamentavelmente, consentida – do ser humano. Ora, esta condição humana não é um destino; tem a ver com as opções que fazemos, que ainda estamos a tempo de fazer. Pensamos que, para além da contratualização da vida humana, é urgente e necessário recuperar o lugar e a noção sadia de aliança – ousaria dizer, a noção divina e evangélica de aliança – que nos permita olhar o mundo e as nossas relações numa outra perspetiva. A noção de aliança está para além das relações de dominação, de força, e de compromisso, para além dos poderes instituídos, das cimeiras dos tratados, das lógicas de lucro e benefício. Se o acordo põe em evidência a dimensão contratual da vida, com a aliança é a dimensão relacional que sobressai. A esta luz, não tenho qualquer tipo de hesitação em dizer que o tempo atual é um tempo de emergência educativa. 13 - Assim como a dor e o sofrimento, e também a alegria, têm muitos rostos, a entrega de si também os tem? Certamente. Cada ser humano é único e irrepetível. Por isso, esta singularidade humana, que releva da sua essência, exprime-se necessariamente de modo singular. A expressão da sua vida como dádiva, como entrega, como oferecimento é, consequentemente, singular e radicalmente resistente à tentativa por parte de outrem de a interpretar ou descrever. A entrega de si não é quantificável; não é mensurável; não é passível de ser avaliada pelos efeitos ou resultados concretos dessa entrega. Tem a ver fundamentalmente com o discernimento de cada um e de cada uma na compreensão de si como dom para si mesmo e para os outros. Durante o simpósio, vamos ter a possibilidade de refletir, com a ajuda de uma médica, de um padre, e de um responsável da Caritas, concretamente no primeiro painel do programa, sobre as “possibilidades e equívocos” da entrega de si. A problemática será retomada num segundo painel, mas agora, pelo ângulo da educação, pensada aqui não como sinónimo de instrução, mas antes como desenvolvimento integral da pessoa: que desafios a entrega de si coloca à educação na família, na escola, na comunidade cristã e no acompanhamento social? 14 - Como pode a pergunta-proposta “Quereis oferecer-vos a Deus?” chegar às gerações mais jovens? A pergunta corre o risco de ficar sem resposta num tempo de desapego, de esquecimento e de abandono de Deus. O Deus de Jesus Cristo está ao abandono; abandonado pelo mundo e abandonado pela sua família mais chegada: os cristãos. A própria Igreja de Jesus Cristo dá a ideia, muitas vezes e de muitos modos, de ter Deus ao abandono, gastando as suas energias supostamente com as coisas de Deus, mas esquecendo Deus. Ousaria dizer que a Igreja de Jesus Cristo está num processo de secularização de si mesma. Esta secularização da Igreja, sendo extraordinária fonte de dinamismo e de incarnação, pode levar à diluição da identidade da Igreja de Jesus Cristo, por não ser suficientemente cuidadora do seu fundamento e por não estar suficientemente atenta à possível atrofia da sua dimensão celeste e escatológica. Saindo do nosso perímetro de segurança e de conforto e dos nossos lugares habituais de celebração, já nas margens da fé, vale a pena olhar as periferias, os que ficam fora, os que não querem entrar. Então, andando por aí, sentiremos o mesmo sobressalto: Deus está ao abandono. Chegou o tempo de os crentes cuidarem de Deus; se não forem os crentes a fazê-lo, quem o fará? É neste quadro que o convite urgente à nova evangelização se inscreve. Como sabe, em Outubro próximo terá lugar, em Roma, a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Não deixa de ser sintomático o tema central da agenda: A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Também em Outubro, no dia 11, terá lugar a abertura oficial do ano da Fé. Eis dois importantes acontecimentos com os quais todos os cristãos deveriam entrar em sintonia. Quem sabe, estes dois grandes acontecimentos eclesiais não despertam de novo para o Evangelho a nossa fé gasta e cansada? Quem sabe, não estaremos, então, à altura de anunciar às jovens gerações (como às menos jovens) uma “fé que faça viver”? Vem-me à lembrança aquelas palavras de Bento XVI na homília de inauguração do seu pontificado e na esteira de João Paulo II: “Não tenhais medo de Cristo. Ele não retira nada e Ele dá tudo”. Não posso também deixar de recordar as palavras de João Paulo II, em 1979, na primeira carta encíclica do seu pontificado: “a tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso tempo, é a de dirigir o olhar do ser humano e de endereçar a consciência e a experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo, de ajudar todos os seres humanos a ter familiaridade com a profundidade da Redenção que se verifica em Cristo Jesus” (Redemptor Hominis, n.º 10). Tal só é possível se os cristãos, à imagem de Maria de Nazaré – a primeira cristã – se apaixonarem pela Palavra, se deixarem fecundar pela Palavra e anunciarem a Palavra que salva e que é o Salvador: Jesus Cristo. Talvez as novas gerações possam, então, abrir-se à possibilidade de conjugar a fé em Deus na primeira pessoa: Sim, eu creio e aceito referir todo o meu ser a Ti. |