13 de março, 2020
Podemos aprender a morrer?
Podemos aprender a morrer? É uma pergunta honesta, que me dá um nó na garganta. Pergunto-me se qualquer discurso sobre a morte não está distorcido à partida pelo simples facto de pretender falar com eloquência daquilo que é, antes de tudo, um nó na garganta. Quantas vezes pretendemos tornar o sofrimento inteligível e acabamos a justificar o injustificável? E quantas vezes adocicamos o sofrimento com palavras melosas e pretendemos dar-lhe um horizonte de sentido que apenas o tornam mais insensato e cruel? Assustam-me tantas linhas escritas com palavras fáceis e assertivas quando o tema é a morte. Mas, por outro lado, como poderíamos deixar de falar da morte, precisamente quando ela é um nó na garganta que nos aflige e sufoca? Talvez possamos aprender algo com a morte da criança Jacinta Marto, cujo centenário agora celebramos. Não tanto pelo facto biográfico de ter morrido criança, mas pelo facto biográfico da forma como morreu criança, como viveu a morte e a deu a viver – o verbo é aqui escolhido com pinças – aos que a rodeavam. A narrativa da sua morte é um itinerário de dor: hospitalizada em Ourém, regressa a casa quando desistem de a curar; mas Lisboa poderia trazer melhor acompanhamento e a Jacinta tem ainda de deixar a sua família e amigos e rumar sozinha para a capital onde, passadas semanas intensas, acabará por morrer. A sua dor maior, o sofrimento para o qual anseia por paliativo, é este, assim resumido à sua prima Lúcia: «Se tu fosses comigo! O que mais me custa é ir sem ti. Se calhar, o hospital é uma casa muito escura, onde não se vê nada; e eu estou ali a sofrer sozinha». Diante da morte, mergulhada num sofrimento físico atroz, a dor maior da Jacinta é o da solidão. O que dói uma dor que não sabemos dizer não é a morte, mas a solidão. Talvez por isso nos pareça, tantas vezes, que a morte é solução para a dor, para a incapacidade, para a perda de autonomia. É uma tragédia que diante do drama da solidão gastemos o nosso esforço a debater as formas de morrer. A coroação da autonomia como valor absoluto é um fanatismo moderno ocidental questionável que nos faz esconder do outro a nossa vulnerabilidade e recear a dependência do cuidado alheio como se se tratasse de uma desvalorização da nossa dignidade. A experiência da Jacinta será redimida pela presença que a esperança lhe oferece. Mas o dilema da sua morte prende-se precisamente com o acompanhamento na vida e na morte. E a história ilumina-se quando compreendemos que, num volte-face, era a Jacinta quem acompanhava e cuidava dos seus na vida e na morte. A Lúcia diz-nos, nas suas memórias, que quando a mãe se mostrava triste por a ver doente, a Jacinta dizia: «Não se aflija, minha mãe: vou para o Céu. Lá hei de pedir muito por si». É um mistério que não sei dizer: até a morte pode ser ainda lugar de cuidado pelo outro. Talvez seja isto que nos falte ainda aprender sobre esse lugar cheio de vida que é lugar do morrer. Nos últimos dias da sua vida, a Jacinta tinha uma ferida aberta no seu peito. Gosto de pensar nessa ferida como metáfora de um coração que se expande para lá de si mesmo, como síntese da sua vida breve e abundante no cuidado dos outros. Recorda-me a ferida aberta, no alto da cruz, daquele que se apresentou ao mundo como Bom Pastor e que, tendo amado os seus, amou-os até ao extremo (Jo 13,1).
Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia (In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1170, 13 de março 2020) |