04 de julho, 2007

A Peregrinação Internacional Aniversária dos 90 anos da terceira aparição de Nossa Senhora em Fátima, dias 12 e 13 de Julho, foi presidida por D. Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga. O tema da Peregrinação deste mês foi " Jesus Cristo, o Rosto da Misericórdia".
Durante a homilia do dia 13, o Arcebispo de Braga e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa destacou que "A misericórdia de Deus é a sua fidelidade, a sua eterna determinação a conduzir o homem à plenitude da vida que é a Aliança de Amor para a comunhão consigo. Deus é incansável, de infinita paciência, disposto a recomeçar sempre".
Aos peregrinos, pediu que sejam fazedores da "justiça, igualdade, fraternidade" e explicou que "a lógica da justiça e da misericórdia é esta: recebeste de graça, dai gratuitamente; há mais alegria em dar do que em receber; tal como Deus vos perdoou perdoai vós também; quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria".
Num apelo aos peregrinos para que cresçam “na fé e na caridade” e se inspirem para uma “intervenção social à altura dos presentes desafios e das propostas do pensamento da Igreja”, considera o prelado, que se assiste actualmente a "uma viragem voraz laicista que, duma forma camuflada ou aberta, procura afastar Deus da história e da vida dos homens e do percurso colectivo do nosso país, todos os cristãos devem empenhar-se na afirmação da primazia de Deus e dos valores evangélicos para construir uma sociedade mais justa, em condições de vida mais digna para todos os nossos cidadãos".
Procederam à sua inscrição, no Serviço de Peregrinos do Santuário de Fátima,  para participarem nesta Peregrinação Aniversária 62 grupos de peregrinos, de vários países do mundo.
De acordo com a Secretaria da Associação dos Servitas de Nossa Senhora de Fátima, durante os dias da peregrinação, confessaram-se 1084 pessoas e 39 foram atendidas no Lava Pés. Foram atendidas no Posto de Socorros do Santuário de Fátima 80 pessoas.
Na Eucaristia de 13 de Julho, 96 peregrinos participaram na Bênção dos Doentes .
A 12 de Julho, na Eucaristia nocturna, que antecedeu a vigília de oração, D. Jorge Ortiga pediu aos cristãos para serem corajosos: "Hoje como discípulos de Cristo, somos chamados à coragem - que pode gerar incompreensão - de apontar o erro dos prepotentes, de colocar o dedo em muitas feridas da humanidade - desde o lucro fácil à corrupção, da violência ao terrorismo, da exploração ao aproveitamento dos inocentes, dos crimes contra a maternidade às condições de vida degradantes".
No mesmo momento da Eucaristia de ontem, ao frisar que "Quem se ajoelha para adorar a Santíssima Trindade, como os pastorinhos (de Fátima), é livre para se dar na misericórdia, sem ser oprimido por qualquer poder pretensamente absoluto", D. Jorge Ortiga dirigiu-se a Nossa Senhora: "Ó Maria, Senhora de Fátima, dá-nos a sabedoria para ler a nossa história com os olhos e o coração da confiança, da esperança na providência e na misericórdia do Deus de quem és serva".
 
Homilia de D. Jorge Ortiga - 12 de Julho de 2007:
A Misericórdia para um mundo de Justiça
Caros discípulos de Jesus Cristo e peregrinos nos caminhos de Maria:
Digo-vos a vós que me escutais. Estas são as palavras que introduzem o Evangelho desta eucaristia. Jesus dirige-se aos discípulos que escutam a proclamação das bem-aventuranças, que na versão de Lucas, é feita na planície depois de Jesus, no monte, ter rezado e escolhido os Doze.
1. Convite à diferença
Também os pecadores amam a quem os ama e emprestam a quem lhes poderá retribuir; Vós, porém… Jesus, o profeta do Evangelho, da proximidade do Reino de Deus, interpela os que escolheu e O seguem à diferença, à novidade de vida que se expressa de um modo particular no anúncio do dom recebido, ou seja, a misericórdia de Deus revelou-se de forma plena no hoje do Messias. Daí que o discípulo deva ser aquele que canta com Maria: Olhou para a humildade da Sua serva, a Sua misericórdia permanece de geração em geração. Ela, a primeira e a mais excelsa discípula do seu filho e Filho de Deus, descobre que o Deus de Abraão, da Aliança, é fiel às Suas promessas e, agora, quando o tempo se cumpriu e chegou à plenitude, visita o Seu povo através do Filho, rosto do Seu Amor misericordioso. O discípulo experimenta a misericórdia de Deus e visita os outros levando-lhes gestos de misericórdia e, em simultâneo, proposta de conversão.
Deus, Pai rico de misericórdia, que sente alegria em perdoar, que prepara uma festa para o filho perdido nos seus devaneios de juventude, que só sabe dar e dar-Se, não é, todavia, indiferente. A Escritura para expressar a sensibilidade de Deus face ao mal recorre à linguagem dos sentimentos humanos: a ira quer traduzir precisamente a paixão, o sofrimento, a paciência, o pathos de Deus que perdoa os pecados, acolhe o pecador arrependido mas está sempre do lado do oprimido, do injustiçado, do pobre, do marginalizado. O clamor do inocente perseguido, rejeitado, instrumentalizado pelos poderes deste mundo chega aos Seus ouvidos, comove-O e Deus não deixará de intervir para fazer justiça, ou seja, para salvar, redimir, instaurar uma nova ordem, onde a Paz e a justiça hão-de resplandecer. Ele não quer a morte do pecador, mas antes que se converta e viva. Toda a Sua pedagogia paterna, que corrige, admoesta, exorta, ameaça não é atitude arbitrária dum ser todo-poderoso, mas nasce dum coração que chora com o mal dos Seus filhos. A ira divina não é o mal-humor por ver a Sua majestade desrespeitada, mas a opção soberana de consolar os atribulados e isto põe em causa aquelas forças que, orgulhosamente, pretendem decidir, quais pequenos deuses, no lugar do Deus vivo e verdadeiro.
2. A misericórdia exige fidelidade
O povo de Israel experimentou na história das suas infidelidades à Aliança esta pedagogia divina: pela boca dos profetas, exortava-o à conversão, ao voltar-se para Ele e com ameaças procurava evitar a desgraça; nem sempre o povo entendeu e o desenlace dramático tornou-se inevitável. Na interpretação destes episódios da história, os textos falam de castigo, da ira de Deus. Estas expressões indiciadoras da condescendência divina nas palavras e categorias da experiência humana escondem na sua profundidade um dado fundamental: Deus não é cúmplice, na sua indiferença, do mal da humanidade mas antes como pai amoroso tenta tudo e sempre que os seus filhos encontrem a fonte da vida não nas cisternas vazias e secas, nas palavras de Jeremias, mas no rochedo que, pela Sua generosidade e prodigalidade, pode tornar-se torrente de água no deserto do homem.
Sempre na revelação se afirma a primazia do dom: a Sua ira dura um momento, a sua misericórdia é para sempre. E Paulo na 1ª Carta aos Tessalonicenses dirá que para os eleitos o Dia do Senhor não é de ira mas de salvação (sotería).
Maria no seu Magnificat conjuga bem as dimensões da misericórdia: a Sua misericórdia permanece de geração em geração na acção salvífica que se traduz em Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes! Os Faraós e os Herodes de todos os tempos não se sentirão tranquilos com o Deus que exige a libertação do Seu povo e que envia o Seu Filho, feito menino, para ser Rei no Amor, na Paz, na Justiça e na Verdade.
Os filhos deste rei são chamados a ser como ele: misericordiosos, dando mais do que se pede, bendizendo, perdoando. Esta é a violência dos pacíficos que não aniquila o adversário, mas que pela energia do amor o desarma, o converte, o salva do seu orgulho, da sua prepotência, dos tronos da idolatria. Quem se ajoelha para adorar a Santíssima Trindade, como os pastorinhos, é livre para se dar na misericórdia, sem ser oprimido por qualquer poder pretensamente absoluto. Nada te perturbe, nada te espante, só Deus basta dizia Santa Teresa. É destas vestes que o discípulo de Cristo se reveste e assim será um sinal para o mundo, um altar da dádiva do Deus verdadeiro, como nos ensina Fátima, altar do mundo. Ser misericordioso é testemunhado e muitos poderão aprender um estilo de vida. Só que, em certos momentos, a mesma misericórdia pode exigir denúncia de quem não condena o pecador mas reconhece os múltiplos pecados. Hoje, como discípulos de Cristo, somos chamados à coragem - que pode suscitar incompreensão – de apontar o erro dos prepotentes, de colocar o dedo em muitas feridas da humanidade – desde o lucro fácil à corrupção, da violência ao terrorismo, da exploração ao aproveitamento dos inocentes, dos crimes contra a maternidade às condições de vida degradantes, etc.
Caros cristãos: Gostaria de evocar nesta hora a figura do servo de Deus, João Paulo II, várias vezes peregrino deste santuário: vítima da agressão do mal, venceu-o nos gestos de perdão oferecido gratuitamente e confessou aqui: trago nos meus lábios o Canto de Maria, Mãe de Misericórdia; a misericórdia é a mensagem deste lugar, é o seu segredo!
Estou convencido que uma nova civilização, a do Amor nas palavras de outro peregrino, Paulo VI, é possível se os discípulos de Cristo forem misericordiosos como o Seu Deus é misericordioso. Parece uma utopia. Mas o povo cristão reza mesmo neste vale de lágrimas em que se transforma o mundo quando os orgulhosos parecem triunfar: Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, Vida, doçura, esperança nossa, Salve!
Ó Maria, Senhora de Fátima, dá-nos a sabedoria para ler a nossa história com os olhos e o coração da confiança, da esperança na providência e na misericórdia do Deus de quem és serva. Em ti confiamos, ó piedosa, ó doce Virgem Maria; Rogai por nós, Santa Mãe de Deus para que sejamos dignos da Promessa do Pai, o Espírito que renova a face da terra. Ámen.
Fátima, 12.07.2007
+ D. Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

Homilia de D. Jorge Ortiga - 13 de Julho de 2007:
A Misericórdia: apelo da Doutrina Social da Igreja

Caros filhos de Deus, Pai rico de misericórdia e de Maria, Mãe de Misericórdia:

Aqui, neste lugar santificado pelas aparições da Nossa Senhora a três humildes pastorinhos, chegam de toda a terra invocações de misericórdia, clamores de justiça, gritos de auxílio e do Céu desce a palavra da promessa: por fim o meu imaculado coração triunfará. Sim, triunfará o amor mais forte que a morte e o pecado, vencerá a justiça de misericórdia trazida por Aquele que foi gerado nas entranhas da Virgem e amamentado aos seus seios; porque Omnia vincit Amor (O Amor tudo vence). Sim, caros peregrinos, aqui, neste altar do mundo, mergulhamos nos dramas da história quotidiana e subimos quase ao Céu por graça do Filho de Maria, sacramento do encontro do Céu e da terra, da eternidade e do tempo, de Deus e do homem.

Vem-me à mente e ao coração as palavras do salmista: Se tiverdes em conta os nossos pecados, ó Senhor, quem poderá salvar-se? Mas em Vós está o perdão para serdes temido com reverência!

Paulo que na Carta aos Romanos de que hoje ouvimos uma exortação conclusiva tematiza e elabora com subtileza surpreendente esta equação teológica: Todos pecaram [pecámos] e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, são justificados pela Sua graça (3, 23-24). E mais: a salvação não depende daquele que quer nem daquele que se esforça por alcançá-la mas de Deus que é misericordioso (9,16).

Justiça e misericórdia são atitudes do mesmo Deus, são expressões da sua natureza: Deus é justo mas não justiceiro, Deus é misericórdia mas não impassível ao mal e ao pecado. Aliás, aqui se afirmou que Deus se sente muito ofendido! Ele sofre porque é clemente e compassivo para com o homem que se perde na procura da felicidade.

A misericórdia de Deus é a Sua fidelidade, a Sua eterna determinação a conduzir o homem à plenitude da vida que é a Aliança de Amor para a comunhão consigo. Deus é incansável, de infinita paciência, disposto a recomeçar sempre. A I Leitura ilustra-o bem: Moisés demora no monte recebendo o pacto, as Dez palavras que são a ética para guardar a aliança. Na planície o povo logo esquece os benefícios recebidos, sente-se desamparado e fabrica um bezerro de oiro. Quando Moisés volta, indigna-se e despedaça as tábuas da lei escritas pelo próprio Deus. Tudo parece terminar. Mas o Deus fiel reescreve-as na sua clemência e compaixão e deixa-se comover pela prece de intercessão do mediador Moisés: se achei graça a Teus olhos, digna-Te caminhar connosco! Que seria do homem, que fabrica os seus ídolos para não se sentir abandonado nos caminhos da sua história, se não fosse liberto e recebesse a graça da companhia do Deus que caminha com ele? Quantas tragédias em séculos recentes porque o homem se endeusou a si mesmo e, na injustiça, tirania, despotismo, no orgulho de ser um deus, fez milhares de escravos e espalhou cenários de morte em muitos países! Como estão vivos na nossa memória esses momentos obscuros da história!

Como é paciente este Deus que toma a iniciativa da aliança e a renova sempre que a infidelidade do homem a viola e transgride, dando, por vezes, a sensação de que só restam cinzas. Mas Ele renova a face da terra!

A justiça do Deus de Abraão, de Moisés, dos profetas, de Jesus, de todos os verdadeiros crentes, é justiça que justifica, não é paga do mal pelo mal, antes dom gratuito, bênção em vez de maldição, perdão em vez de vingança. Deus não sabe senão amar, dar, perdoar, renovar, esperar até que o homem reconheça que só vive n’Ele: o justo viverá pela fé!

Os seus filhos são bem-aventurados porque têm fome e sede de justiça, não a sede de vingança, não o rigoroso cumprimento da Lei numa lógica meritocrática. Como diz João: a Lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo.

A lógica da justiça e da misericórdia é esta: recebestes de graça, dai gratuitamente; há mais alegria em dar do que em receber; tal como Deus vos perdoou perdoai vós também; quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria…

Pode aproximar-se da blasfémia dizer: Deus é misericordioso mas também é justo!... como se a justiça limitasse a misericórdia ou esta tornasse inútil a justiça. N’Ele não há diferença entre as duas, antes são expressão uma da outra. Sim, Deus não é como nós: temo que algumas das nossas domus iustitiae sejam palácios de interesses, de corrupção e de, paradoxalmente, de injustiça!

Evoco aqui João Paulo II que tendo proposto a Dives in misericordia (Rico em misericórdia) como a imagem de Deus, cujo Filho é o Redentor do Homem e o Espírito Santo Senhor que dá a vida proclamou com ousadia de profeta a justiça social em vários documentos que ficarão como preciosa herança na Doutrina Social da Igreja, nomeadamente na Sollicitudo Rei Socialis, de que celebramos este ano o 20º aniversário (30.11.1987). E como não recordar João XXIII que na Pacem in terris proclamava a paz é fruto da justiça e Paulo VI que na Populorum Progressio , há 40 anos (26.03.1967), declarava o desenvolvimento é o novo nome da paz?

Julgo que estes documentos revelam bem a profunda relação entre a teologia, a confissão e celebração da fé e a problemática social. Numa altura em que assistimos a uma viragem voraz laicista que, duma forma camuflada ou aberta, procura afastar Deus da história e da vida dos homens e do percurso colectivo do nosso país, todos os cristãos devem empenhar-se na afirmação da primazia de Deus e dos valores evangélicos para construir uma sociedade mais justa, com condições de vida mais digna para todos os nossos cidadãos. O estudo da Doutrina Social da Igreja pode, por um lado, contribuir para o crescimento na fé e na caridade dos seus membros e, por outro, para inspirar uma intervenção social à altura dos presentes desafios e das ricas propostas do pensamento da Igreja.

Felizes os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática; Felizes nós, caros irmãos, que somos destinatários destas mensagens: do Evangelho desde o êxodo da escravatura até à plena revelação em Cristo Jesus, de Maria aos pastorinhos, da Tradição e do Magistério da Igreja e até dos sinais do nosso tempo, um dom da misericórdia divina.

O doutor da lei que perguntou a Jesus qual o maior mandamento e a que Jesus replicou com a parábola do Bom Samaritano ouviu no final esta apelo: Vai e faz o mesmo que o Samaritano fez. Vamos nós também e pratiquemos obras de misericórdia e de justiça tal como Jesus que passou pelo mundo fazendo o bem. E é a Senhora de Fátima que insiste connosco: Fazei tudo o que Ele vos disser.

Que os beatos Francisco e Jacinta que ofereceram as suas vidas partilhando com Deus a sua compaixão pelos pobres pecadores intercedam por nós para que sejamos ouvintes e praticantes da Palavra, testemunhando o Amor misericordioso de Deus que é Amor e que quer renovar a face da terra na Paz, na Justiça, na Verdade e na Fraternidade universal.

Fátima, 13.07.2007

+ D. Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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