20 de junho, 2010


DO ENCONTRO À COMPAIXÃO
 
1. Sabedoria infantil
Um autor e conferencista, Leo Buscaglia, fala de um concurso sobre gestos infantis, em que ele foi membro do júri que premiou quatro casos. O que ficou em primeiro lugar foi o seguinte.
Um garoto de quatro anos tinha um vizinho idoso, cuja esposa falecera há pouco tempo. Vendo-o a chorar, o menino foi para o quintal do vizinho e, simplesmente, sentou-se ao seu colo. Ao regressar a casa, a mãe perguntou-lhe o que tinha dito ao velhinho. E o menino respondeu: “Nada. Só o ajudei a chorar”!
Eis uma parábola viva do tema do nosso congresso “Do encontro à compaixão”. Eis como as crianças têm o carisma de ver e dizer tantas coisas profundas que nós adultos vemos com fadiga e temos dificuldade em dizer.
O episódio serve também para uma primeira aproximação à compaixão como paixão partilhada, como companhia que partilha o pão da dor e as lágrimas de quem sofre. E ajuda-nos a compreender como os pastorinhos, e de modo particular a pequenita Jacinta, entraram no mistério da compaixão de Deus e de Nossa Senhora pelos sofrimentos do mundo, que perpassa a Mensagem de Fátima, e o expressaram na sua linguagem infantil.
Não se trata, pois, de um problema abstracto, meramente académico. É antes uma questão profundamente existencial que penetra até ao núcleo da fé e da espiritualidade cristãs, sobretudo depois das experiências atrozes de sofrimento do século XX, contempladas na mensagem de Fátima.
2. Deus não é apático nem indiferente; é Deus “simpático”
Na encíclica Spe Salvi, o Papa Bento XVI oferece-nos uma página bela, densa e iluminante sobre a riqueza, a actualidade e o alcance do nosso tema:
“Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor da verdade e da justiça; sofrer por causa do amor e para se tornar uma pessoa que ama verdadeiramente: estes são elementos fundamentais de humanidade, o seu abandono destruiria o próprio homem. (...) Na história da humanidade, cabe à fé cristã precisamente o mérito de ter suscitado no homem, de maneira nova e a uma nova profundidade, a capacidade dos referidos modos de sofrer, que são decisivos para a sua humanidade. A fé cristã mostrou-nos que verdade, justiça, amor não são simplesmente ideais, mas realidades de imensa densidade. Com efeito, mostrou-nos que Deus – a Verdade e o Amor em pessoa – quis sofrer por nós e connosco. Bernardo de Claraval cunhou esta frase maravilhosa: Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis – Deus não pode padecer, mas pode compadecer(consofrer). O homem tem para Deus um valor tão grande que Ele mesmo se fez homem para padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir daí entrou em todo o sofrimento humano Alguém que partilha o sofrimento e a sua suportação; a partir daí se propaga em todo o sofrimento a con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim a estrela da esperança” (n. 39).
O nosso Deus não é apático, indiferente à dor humana, mas Deus simpático, no sentido original do termo, que sofre connosco. A compaixão é a resposta de Deus à paixão do homem e manifesta-se de modo perfeito na cruz, como o afirma claramente Heb 4, 15. “ Poder-se-ia dizer: a cruz de Cristo é a compaixão de Deus com o mundo” (J. Ratzinger)
Existe uma só paixão e compaixão que é realmente redentora, a paixão e a compaixão de Deus: “Deus Amor que está na origem de todos os amores é atingido por todas as dores humanas e todas as vezes que o homem sofre, há uma ferida no amor de Deus” (M. Zundel).
A paixão de Deus é a “passio caritatis” ou “passio misericordiae” de que falava Orígenes, a capacidade infinita e indizível do seu amor  de compadecer-se de quem padece e pôr-se a seu lado e no seu lugar.
 
3. Maria, ícone da compaixão de Deus
A esta luz compreende-se a figura de Maria como ícone da compaixão de Deus. Segundo Ratzinger, “a imagem da Pietà, a Mãe sofredora pelo filho morto, torna-se a tradução viva da palavra hebraica rahamim usada no Antigo Testamento para expressar a compaixão entranhada de Deus (entranhas de compaixão): ela manifesta a dor materna de Deus. É a ‘compassio Dei’ figurada numa pessoa que se deixa atrair totalmente para dentro do mistério de Deus”.
Assim, “a imagem da Mãe sofredora, feita toda ela compaixão, com o Filho morto no regaço, tornou-se particularmente cara à piedade cristã. Na Mãe consofredora, os sofredores de todos os tempos encontraram o mais puro reflexo daquela divina compaixão que é a única verdadeira consolação. De facto toda a dor, todo o sofrimento é, em base à sua última essência, solidão, perda de amor, felicidade destruída de quem não é mais acolhido. Só o “com” pode curar a dor” (J. Ratzinger).
Estas considerações ajudam-nos a enquadrar e compreender a mensagem de compaixão de Deus através de Maria e do seu Imaculado Coração, em Fátima, e como a beata Jacinta a apreendeu e viveu ao seu nível infantil. De facto, ela manifestou um verdadeiro amor de “com-paixão” como participação na dor de Deus pelo drama da incredulidade e do ódio, pelo sofrimento da Igreja perseguida e pelos sofrimentos terrificantes da humanidade em guerra  que eram expressão da banalidade e normalidade do mal. Mostrava-se pois incansável na oração,  no sacrifício pela conversão dos pecadores, na partilha com os pobres. Eis apenas algumas das suas expressões significativas:
“Nosso Senhor está triste, porque Nossa Senhora disse para não o ofenderem mais, que já está muito ofendido e ninguém faz caso”;
“Havemos de rezar e fazer muitos sacrifícios pela conversão dos pecadores”;
“Pedirei para que não venha a guerra”;
 Impressionada por uma visão diz à Lúcia: “Não vês tanta estrada, tantos caminhos e campos cheios de gente, a chorar com fome, e não têm nada para comer? E o Santo Padre em uma igreja diante do Imaculado Coração de Maria a rezar? E tanta gente a rezar com ele?”.
O “fazer sacrifícios” é uma expressão do amor de compaixão, “amor que se sacrifica pelos outros e não sacrifica os outros” (Bento XVI). Nesta forma tradicional de devoção está a convicção “de poder inserir no grande com-padecer de Cristo as pequenas canseiras que entravam assim, de algum modo, a fazer parte do tesouro de compaixão de que o género humano necessita. Deste modo, também as pequenas moléstias do dia a dia poderiam adquirir um sentido e contribuir para a economia do bem, do amor entre os homens” (Spe Salvi n. 40).
 4. Para uma espiritualidade e cultura de compaixão
Devemos, por fim, deixar-nos interpelar pelo significado da compaixão para uma espiritualidade cristã nos nossos dias e na cultura actual.
Há figuras de grande relevo que mostraram a importância da compaixão (enquanto amor solidário e sofrimento com e pelos outros),  testemunhando-a com a própria vida e que constituem um exemplo luminoso para a espiritualidade: Teresa de Lisieux, Charles de Foucauld, Edite Stein, Maximiano Kolbe, D. Bonhoeffer, a pequena Jacinta...
Todos eles – cada um a seu modo – mergulharam no mistério do sofrimento do mundo e carregaram sobre si, com solidariedade, a compaixão de Deus e até o peso do eclipse de Deus no mundo. Para eles, a experiência da noite, do deserto, do sacrifício até ao martírio transformou-se em algo activo, em expressão de amor, numa vida dada pelos outros a fim de que a luz e a esperança de Deus resplandecesse mesmo na noite mais escura e opressora.
Também para o cristão de hoje,  este é um caminho: partilhar o sofrimento dos outros e do mundo e testemunhar-lhes  a luz da fé, da esperança e do amor. Eis o desafio para o cristão e para a Igreja de hoje: uma presença activa de compaixão. Maria é exemplo e tipo desta compaixão; Jacinta, uma candeia, uma pequena estrela onde essa compaixão resplandece.
A Mensagem de Fátima confia à teologia a tarefa de repensar e repropor, de modo novo, em toda a sua riqueza e beleza, esta característica da compaixão, com todas as suas implicações e aplicações na leitura e meditação da história, na existência cristã, na vida e missão da Igreja, no diálogo ecuménico e interreligioso, na cultura da vida e na civilização, perante os desafios da cultura narcisista pós-moderna e das crises da globalização “que nos torna mais vizinhos mas não nos faz irmãos”. Este Congresso ajudar-nos-à, sem dúvida, nesta tarefa.
Muito obrigado a todos e bom congresso!
+ António Marto, Bispo de Leiria-Fátima
Fátima, 4 de Junho de 2010
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