12 de novembro, 2009

Cuidar da vida até à morte:

Contributo para a reflexão ética sobre o morrer

1. A discussão em curso na nossa sociedade
A dignidade da pessoa na fase final da vida tem sido, nos últimos meses, objecto de debate na sociedade portuguesa. A opinião pública, e os cidadãos em particular, são confrontados com muitos dos problemas que, justamente, são motivo de preocupação e de reflexão, sejam eles de natureza ética, social, assistencial ou económica.
Muitas das questões actualmente em discussão são de todos os tempos, pois têm a ver com a dificuldade em integrar a morte no horizonte da própria vida. Outras são típicas da nossa época, porque resultam das condições que as novas possibilidades da medicina nos proporcionam. Uma observação atenta das intervenções que surgem nos meios de comunicação social mostra uma grande falta de rigor na terminologia usada; e é visível que, por vezes, se pretende validar opções inaceitáveis (morte directa de um paciente) aplicando o termo “eutanásia” a situações que não o são de facto,  e que podem ser eticamente aceitáveis.
Os Bispos de Portugal, sabendo da importância destes problemas, da intenção que, a nível político, se tem manifestado no sentido de produzir legislação neste âmbito e perante a ambiguidade de muitos dos conceitos que são usados, pretendem, com esta intervenção, dar um contributo para o debate em curso e oferecer aos católicos algumas linhas de orientação que devem ser tidas em conta nas suas reflexões.
 
2. A visão cristã de um problema não confessional
Será conveniente recordar que esta não é uma discussão de carácter religioso ou confessional, embora algumas posições possam ser incompatíveis com a visão cristã da vida e do homem. Ao pensar sobre opções de carácter jurídico ou ético, é necessário, portanto, questionarmo-nos sobre aquilo que é importante para uma vida verdadeiramente humana, sobre o que é decisivo na realização da pessoa, sobre os valores autênticos de humanidade, sobre o modelo de sociedade em que queremos viver.
É a este nível que se torna decisivo o contributo das intuições que brotam da fé cristã. A revelação bíblica mostra-nos a existência humana como resultado da bondade divina, isto é, como um dom que suscita em nós gratidão e não nos dispensa da responsabilidade de cuidar dele. Para o crente, a vida não está à inteira disposição de quem quer que seja, não é arbitrariamente disponível, mas tem de ser respeitada como a condição básica de realização pessoal. A vida humana é prévia a qualquer projecto pessoal, por isso ninguém é senhor absoluto da sua própria vida e muito menos senhor da vida dos outros. O valor da vida humana não brota das valorizações que a sociedade atribui ou dos critérios que no momento são socialmente significativos, mas de uma dignidade prévia a qualquer criteriologia. O suporte desta dignidade é a própria condição humana, que, para o cristão, tem origem na bondade criadora de Deus e no amor salvífico de Jesus Cristo.
Esta visão crente da vida leva-nos também a encarar com realismo os limites naturais da existência humana, já que, numa perspectiva de fé, a realização plena e definitiva da pessoa só é possível na vida em Deus. O testemunho dos mártires cristãos mostra-nos que não é sensato para o crente lutar pela vida a todo o custo. O horizonte da eternidade valoriza e, ao mesmo tempo, relativiza a vida biológica de cada pessoa. Por outro lado, a afirmação da convicção de que só Deus é o Senhor da vida, não retira ao homem a sua responsabilidade de procurar as melhores opções para cuidar da vida que tem diante de si. Cada pessoa deve ser respeitada como sujeito da sua própria existência e nunca simplesmente como objecto do qual se possa dispor arbitrariamente.
 
3. O morrer na cultura actual
Estas convicções da fé cristã necessitam permanentemente de ser confrontadas com os desafios e as exigências de cada época. Algumas características da cultura contemporânea deram origem a um modo próprio de abordar não só os problemas relacionados com o processo de morrer, mas também a própria morte e o sofrimento humano.
Por um lado, tornou-se dominante uma concepção de autonomia em que a liberdade individual é elevado a direito absoluto. O homem actual quer não só ser protagonista da sua própria história, mas ter nas mãos todos os processos da sua vida. É neste sentido que parece aliciante poder antecipar a morte ou prolongar o processo de morrer, de acordo com o que no momento for tido como mais vantajoso.
Por outro lado, os desenvolvimentos técnico-científicos no campo biomédico levantam problemas inéditos e apresentam questões inevitáveis. As novas possibilidades que nos são oferecidas pela medicina também tornam mais complexas as situações com que nos deparamos no âmbito dos cuidados de saúde e do acompanhamento a doentes terminais. A diversidade de opções gera perplexidade a quem tem de decidir.
A estes factores circunstanciais acresce o facto de o próprio processo de morrer se ter transformado: o morrer tornou-se mais longo; na maior parte das vezes morre-se em hospitais ou centros clínicos, nos ambientes anónimos e frios das instituições; o sofrimento associado a longas doenças terminais causa uma insegurança adicional; diversos factores contribuem para que os moribundos vivam uma solidão preocupante; o excesso de tecnologia põe em causa os esforços por humanizar o cuidado dos doentes.
 
4. Critérios éticos
É num contexto marcado por estes desafios que tanto os profissionais de saúde como todas as pessoas envolvidas com estas situações necessitam de critérios éticos que orientem no sentido de uma autêntica humanização da fase terminal da vida.
4.1. A obrigação moral de garantir à vida humana uma especial protecção está testemunhada em preceitos primordiais da humanidade, com expressões diversas em todas as culturas, e codificada no mandamento bíblico do Decálogo: “Não matarás” (Dt 5,17). A consciência moral das gerações que nos precederam e o próprio magistério da Igreja procuraram, ao longo dos tempos, com os recursos culturais de cada época, encontrar expressões e concretizações actualizadas deste mandamento, no sentido de elevar e purificar as exigências morais nele contidas. O respeito por este imperativo é certamente incompatível com qualquer forma de agressão directa à vida humana, sempre que ela não ponha em causa a existência de outras pessoas.
4.2. Consequentemente, é eticamente inaceitável qualquer forma de eutanásia, isto é, qualquer “acção ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte” (1). Nem sequer o objectivo de eliminar o sofrimento ou livrar a pessoa de um estado penoso pode legitimar a eutanásia, tanto mais que a medicina e a sociedade dispõem de outros meios para socorrer os pacientes em fase terminal. Equivalente à eutanásia, do ponto de vista ético, é qualquer forma de ajuda ao suicídio, também designado suicídio assistido.
A eutanásia é concretização de um desejo que o homem contemporâneo tem de se apoderar da morte, antecipando-a para a situar no momento que ele próprio determina, resultado de um medo angustiante e desesperado perante o sofrimento. A eutanásia é frequentemente apresentada como um gesto de humanidade ou de compaixão que pretende respeitar a dignidade com que cada ser humano quer viver. Na realidade, porém, e numa linha de princípio, qualquer forma de eutanásia constitui uma renúncia a acompanhar a pessoa doente, traduz a falta de empenho de uma sociedade em procurar meios que permitam viver dignamente todas as fases da existência humana. É, por isso, uma violação, ainda que consentida, da dignidade fundamental que se deve reconhecer a cada ser humano. A eutanásia ou a ajuda ao suicídio são formas desumanas de lidar com a pessoa que vive o seu processo de morrer, constituem “uma ofensa à dignidade da pessoa humana, um crime contra a vida e um atentado contra a humanidade” (2).
4.3. Distinta desta atitude de agressão à vida humana, é a legítima renúncia a recorrer a todos os meios para manter viva uma pessoa em estado terminal. A obstinação terapêutica, também conhecida por “encarniçamento terapêutico” ou “distanásia”, seria precisamente o recurso a um conjunto de intervenções médicas já desproporcionadas face ao bem global que a pessoa poderá vir a experimentar.
Do ponto de vista da ética, reconhece-se uma diferença fundamental entre matar e deixar morrer, quando esta última opção não for equivalente a negligência, mas for concretização do respeito pelo curso normal da vida humana. Esta distinção ética encontra apoio também na já referida concepção cristã da vida, segundo a qual a vida humana é um valor fundamental ainda que não absoluto. É moralmente legítimo, portanto, renunciar aos meios que tenham por finalidade prolongar a vida quando da sua aplicação não se esperem resultados terapêuticos ou ela implique o sacrifício de valores fundamentais para a pessoa em causa.
Também esta renúncia a “tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida” (3) pode ser considerada uma opção de respeito pela vida, já que proteger a vida não significa prolongá-la a todo o custo. O respeito pela vida humana não se reduz a uma protecção incondicional da vida biológica, mas deve incluir também o empenho por garantir todos os elementos que tornam humana essa vida. O direito a uma morte digna pode significar também não esgotar todos os meios médicos, quando tal signifique apenas um prolongamento do morrer.
4.4. Na procura de critérios éticos é fundamental também a distinção entre matar e acompanhar o morrer. Esta última é a opção concretizada, por exemplo, nos cuidados paliativos. Trata-se de aceitar todos os cuidados e intervenções médicas que tenham por objectivo tornar o sofrimento mais suportável, diminuindo ou eliminando a dor, proporcionando todo o acompanhamento humano possível e criando as necessárias condições para um cuidado global (holístico) à pessoa em causa. O Magistério católico ensina, já há várias décadas, que é moralmente aceitável suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo que isso implique limitar a consciência ou abreviar a vida (4).
Parece-nos que seria de evitar a expressão “ajudar a morrer”, dada a sua acentuada ambiguidade, não sendo claro o que se quer indicar com ela, e tendo em conta que as expressões equivalentes noutras línguas são usadas para referir aquilo que designámos por “suicídio assistido”.
4.5.
 
5. Opção por um morrer humano
Recordamos que todas as orientações éticas têm como objectivo encontrar concretizações de um morrer verdadeiramente humano. O que está em causa é a preservação da dignidade da pessoa em algo que é decisivo e constitutivo de todo o projecto pessoal de vida. Isto inclui certamente fazer aquilo que é razoavelmente possível para que o paciente preserve as condições de sujeito da sua própria história. Na medida do possível, “não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave” (5), uma vez que também nos momentos finais da vida cada pessoa deve estar em condições de poder assumir as suas responsabilidades morais, de relacionar-se com as pessoas que lhe são significativas e de viver todo este processo no contexto da sua relação com Deus.
Uma humanização do morrer é incompatível com a eliminação do sujeito que morre, pois não tem em conta a globalidade das suas necessidades. As súplicas de quem sofre, muitas vezes desejando terminar com a situação de dor, mais do que um desejo de morrer, são sobretudo o apelo a uma presença marcada pelo amor, a formas concretas de solidariedade e expressões da necessidade de perspectivas de esperança. Para isto, é necessário criar condições que humanizem a fase terminal, para que a pessoa possa ter um morrer humano: disponibilizar os meios que retirem ou reduzam o mais possível a dor, dar ao doente acesso aos meios médicos de que necessita, assegurar um acompanhamento humano personalizado, garantir ao paciente que não será abandonado à solidão em nenhum momento da sua fase final, permitir-lhe a presença das pessoas que lhe são mais queridas, facilitar-lhe a vivência das suas convicções religiosas e a satisfação das suas necessidades espirituais, possibilitar um acompanhamento psicológico, respeitar os seus valores e legítimos desejos, criar condições de confiança.
Numa sociedade cada vez mais dominada pela exigência de produtividade material e regida por critérios de utilidade, é fundamental transmitir a todos os pacientes, e com maior razão aos que se encontram em estado terminal, que a sua vida é sempre preciosa e valorizada, mesmo nas circunstâncias dolorosas em que se encontram, que não são um fardo para os outros, e que a sua vida continua a ser significativa para a comunidade a que pertencem.
Sabemos que num mundo onde só têm visibilidade os bem-apresentados, os corpos atléticos e estéticos, se torna difícil aceitar como parte da vida social um corpo desfeito pela doença e martirizado pela dor. Na perspectiva cristã, o sofrimento, a doença e a morte são partes da vida e têm de ser integradas no projecto pessoal de vida. Também por isso, a humanização do morrer deve incluir um respeito profundo pela pessoa doente e um cuidado dedicado das suas necessidades. Um morrer humano e digno exige todas as condições de um acompanhamento global da pessoa que tenha em consideração todos os aspectos da vida humana.
Uma vida humana nunca perde sentido nem dignidade. Também o envelhecer e o morrer se integram no sentido da vida humana e reflectem a dignidade humana da pessoa. “O amor para com o próximo […] torna capaz de reconhecer a dignidade de cada pessoa, mesmo quando a doença veio pesar sobre a sua existência. O sofrimento, a idade avançada, o estado de inconsciência, a iminência da morte não diminuem a dignidade intrínseca da pessoa, criada à imagem de Deus” (6).
 
6. Uma sociedade com lugar para todos e uma vida com espaço para a morte
O recurso aos princípios éticos não ignora que as circunstâncias concretas escapam habitualmente a todas as tentativas de regulamentação jurídica ou deontológica. Aos cristãos pede-se que façam a sua reflexão sobre estes problemas em diálogo com os homens e mulheres de boa vontade, certamente à luz dos dados da sua fé, num esforço por procurar um nível elevado de moralidade.
Mesmo admitindo que algumas situações são demasiado complexas para proferirmos juízos prévios, e sabendo que nenhum preceito moral tem em conta a diversidade de situações que a vida apresenta, a legitimação jurídica da eutanásia ou do suicídio assistido teria como consequência uma pressão inevitável sobre todas as pessoas cuja vida não correspondesse aos padrões de realização que são dominantes em determinada sociedade. Facilmente surgiria um grupo de não desejados, vistos como peso da sociedade. Pessoas gravemente doentes ou em estado terminal não podem ter de modo algum a impressão de serem indesejadas, mas devem sentir de modo reforçado que são preciosas e queridas, e que a sociedade não se dispensa de fazer tudo o que está ao seu alcance para as valorizar e integrar.
Para além da discussão sobre a legitimidade moral de optar por alguma forma de auto‑determinar o final da vida, parece-nos fundamental reavivar uma leitura da vida humana, suportada pela fé cristã mas também pelas tradições humanistas da nossa cultura, em que a morte seja integrada como momento significativo da vida de uma pessoa e ao sofrimento seja reconhecida a possibilidade de se integrar no horizonte de sentido da existência humana. A este propósito pode ser iluminadora a afirmação de São Paulo: “Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,7-8). Como explica João Paulo II, “morrer para o Senhor significa viver a própria morte como acto supremo de obediência ao Pai […]; viver para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem” (7). O cristão encontra o sentido redentor do sofrimento humano, unindo‑se a Cristo, no mistério da sua paixão, morte e ressurreição.
 
Antecipar a morte, pelo suicídio assistido ou pela eutanásia, ou prolongar desproporcionadamente o processo de morrer, tem como resultado uma expropriação da morte, retirando ao indivíduo a possibilidade de um morrer pessoal, no respeito pelos tempos necessários a uma integração da dor e da morte no sentido global da existência humana. A doença e a morte são processos pessoais, que, ao mesmo tempo, exprimem a individualidade de cada pessoa e determinam a atitude pessoal perante a própria história. De facto, a maneira de morrer pode ser decisiva quanto ao sentido de toda uma vida. A morte não é um problema a solucionar, mas um mistério que envolve e provoca toda a vida.
 
7. Gratidão e esperança
Por último, os Bispos de Portugal desejam enaltecer e agradecer:
– o exemplo de generosa dedicação de tantas e tantos que acompanham e servem doentes crónicos, deficientes profundos e outras pessoas que dependem fundamentalmente da ajuda que recebem;
– o empenho dos profissionais de saúde que se dedicam à investigação para a superação da dor e aos que se entregam aos cuidados paliativos, oferecendo a qualidade de vida possível a incontáveis pessoas em situações de grande debilidade;
– o testemunho de tantas pessoas com doenças graves, profundamente limitadas, que são um exemplo de aceitação e alegria e nos desafiam a sair da mediocridade estéril do egoísmo em favor de um amor generoso sem fronteiras…
Todos estes são a melhor resposta a quem julga ser uma boa causa promover a legalização da eutanásia; os seus testemunhos são maravilhosos hinos à vida, que devemos sempre proteger.
 
Fátima, 12 de Novembro de 2009
 
NOTAS:
1 - JOÃO PAULO II, Evangelium vitae, Vaticano 1995, n. 65.
2 - CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a Eutanásia (5.05.1980), in: AAS 72 (1980), II.
3 - CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a Eutanásia (5.05.1980), in: AAS 72 (1980), IV.
4 - Cf. PIO XII, Discurso a um grupo internacional de médicos (24.02.1957), in: AAS 49 (1957), 145; CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a Eutanásia (5.05.1980), in: AAS 72 (1980), 547; JOÃO PAULO II, Evangelium vitae, Vaticano 1995, 65.
5 - PIO XII, Discurso a um grupo internacional de médicos (24.02.1957), in: AAS 49 (1957), 145.
6 - JOÃO PAULO II, Discurso aos participantes no XIX Congresso Internacional do Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde, 12.11.2004, n. 3.
7 - JOÃO PAULO II, Evangelium vitae, Vaticano 1995, 67.
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