13 de outubro, 2020

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Na fronteira do medo

 

 

Não cheguei a saber o nome daquela mulher. Mas sei-lhe o rosto, que me ficou gravado por dentro, como se gravam tesouros no coração. Encontrei-a em Namanga, na agitação do posto fronteiriço entre a Tanzânia e o Quénia. Aquela velha maasai vendia missangas que lhe coloriam as mãos e o pescoço e ofereciam uma estranha beleza ao seu sorriso desdentado. Quando ela veio ter comigo, com a pressa de me vender uma pulseira, eu tive receio. O medo é tantas vezes o muro que nos esconde da presença do outro. Eu disse apressadamente que não, que não queria comprar nada, e desejei vestir aquele não como uma máscara que me escondesse da sua presença. Evitei-lhe os olhos, com medo de lhe ver o coração. Mas ela era persistente. Na altura a sua persistência foi para mim um incómodo. Hoje sei que foi sacramento. Ela continuou a seguir-me com as missangas em riste e eu a fugir apressadamente sem direção, levantando o pó de um trilho sem rumo. É curioso que, quando temos medo, o caminho é fuga e a meta é ditada pelo ponto de partida. Foi a custo que, esgotado pela insistência daquela mulher ao longo de vários minutos, percebi que ela me queria dizer algo: «Ni gift. Mimi ni mama. Wewe ni mtoto wangu». O meu fraco kiswahili chegava para compreender as palavras com que ela me surpreendia: «É um presente. Eu sou mãe. Tu és meu filho».

Penso agora como se adequa que tudo isto se tenha passado numa fronteira. A fronteira é o lugar que habitamos todos a todo o tempo. Fronteira entre esta terra em que o outro é incómodo e medo e uma outra terra, para lá dos cálculos possíveis e seguros, que é lugar da surpresa da bênção e da gratuidade da ternura. Poucas coisas nos são tão difíceis como aceitar aquilo que não conquistamos oferecido por um outro que não conhecemos. Receio que a meritocracia seja ditadura que transforma o irmão em rival e que o medo trate de fazer do próximo um inimigo. Queremos a recompensa do que fizemos porque tememos ser abraçados na crueza do que somos sem a capa das nossas conquistas.

Somos como aqueles trabalhadores da primeira hora que não vêm justiça no facto de os colegas do meio-dia e da última hora receberem precisamente o mesmo salário que eles. A teoria do mérito impede-nos de ver que o salário que conta é a bênção de poder partilhar a vinha com todos os que vêm. Os que chegam no último minuto eram esperados desde a primeira hora. Não há medo, há esperança.

Por vezes surge-nos alguém, certamente do lado de lá da fronteira, a recordar-nos que o medo é mau conselheiro e que, se não temos a ousadia de receber de graça o que de graça nos é dado na surpresa de um encontro, a vida é pouco mais do que o rasto de pó de uma fuga apressada. Aquele meu desencontro com a velha das missangas aconteceu a poucos dias do natal, esse lugar-fronteira, essa surpresa impensável que permeou a economia do nosso lado com o dom do lado de lá. Uma prenda me foi dada. Quando há espaço para olhar os olhos do outro, o rival, o inimigo faz-se mãe e filho e irmão. Acreditar na gratuidade é um risco porque é a afirmação clara de que o que nos define não é o que produzimos, mas o que recebemos e partilhamos.

Nas nossas fronteiras do medo, haja velhas maasai a oferecer-nos missangas com um sorriso desdentado. É certamente o sorriso de Deus.

 

Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia

(In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1177, 13 de outubro 2020) 

 

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