02 de janeiro, 2008

Homilia no Dia Mundial da Paz 2008 Catedral de Leiria, 1.01.2008  
 
 
ONDE BATE HOJE O CORAÇÃO DA PAZ?
 
 
Paz do coração e paz civil: a bênção da paz
 
Na porta de entrada deste novo ano de 2008, que hoje iniciamos em oração, está escrita uma bênção, referida na primeira leitura do livro dos Números: “Que o Senhor te abençoe e te guarde! Que o Senhor dirija para ti o olhar do Seu rosto e te dê a paz!”
Pedimos, antes de mais, a paz do coração, sem a qual não há paz verdadeira e profunda; mas pedimos também a paz civil que é a condição para a sobrevivência e a convivência da humanidade.
Por sua vez, o Evangelho convida-nos a contemplar os pastores como representantes da humanidade, que vão à gruta de Belém receber a Paz de Deus anunciada pelos anjos aos homens por Ele amados. No presépio, o Filho de Deus, nos braços de sua mãe, une os homens ao seu redor e une-os entre si.
S. Paulo, na segunda leitura, recorda-nos uma palavra decisiva e chave deste mistério: Pai – palavra típica da experiência cristã da nossa filiação e fraternidade: “Que vós sois filhos, prova-o o facto de que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do Seu Filho que clama: Abba, ó Pai”.
No mistério do Natal de Cristo, em Belém, torna-se claro que Deus quer fazer dos homens uma família humana que seja uma comunidade de paz. É este precisamente o tema da mensagem do Papa Bento XVI para este dia mundial da paz.
 
Onde bate hoje o coração da paz?
 
A paz não se reduz ao silêncio das armas. É uma cultura e um ambiente a construir, a trabalhar e cultivar, em cada dia, por todos nós. O tema proposto reveste-se pois de grande actualidade e particular relevância em tempos de crescente globalização, de riscos e crises globais, com efeitos de boomerang.
 Se a humanidade quer experimentar um futuro em dignidade e paz, deve reconhecer-se como família na sua múltipla unidade e no seu destino comum, deve reconhecer os valores comuns do viver uns com os outros. Para quem sabe ver a história com um olhar de síntese, são evidentes os sinais desta necessidade. É aqui, nesta necessidade, que bate hoje o coração da paz e que Bento XVI captou com genialidade ao propor este tema para nossa reflexão.
Numa leitura singularmente original, ele desenvolve o empenhamento pela paz a partir da visão cristã da família, fundada no matrimónio, para depois alargar o olhar à humanidade inteira. Esta interacção entre a família e a paz constitui uma condição para uma abordagem cultural, social, política e ética dos complexos temas da paz no nosso tempo.
 
A família, casa e escola da paz
 
Antes de mais, o Papa propõe o valor da família em si como centro de educação para a paz, como casa e escola onde se respira, bebe e aprende a paz. Ilustra-o de um modo muito belo. Numa saudável vida familiar faz-se a experiência de todos os ingredientes fundamentais da paz: a justiça e o amor nas relações entre irmãos e irmãs, a importância da lei e da autoridade dos pais, o serviço aos mais débeis que, em família, se tornam centro de interesse quando estão em dificuldade, a ajuda recíproca nas necessidades da vida, a disponibilidade para acolher, para fazer renúncias, para perdoar. “Por isso, a família é a primeira e insubstituível educadora para a paz… É fundamento da sociedade também por isto: porque permite fazer experiências determinantes de paz…Onde é que poderia o ser humano em formação aprender melhor a apreciar o “sabor” genuíno da paz do que no “ninho” originário que a natureza lhe prepara?”
Eis a bondade e a beleza da família que sobressaem nestas experiências fundamentais. Elas fazem da família uma profecia para um mundo unido e pacificado. É aí que, desde pequenino, cada ser humano aprende o a-b-c da linguagem e a gramática (as regras primárias) do amor e da convivência pacífica que depois extravasam para a grande família humana. Por isso, na inflação das linguagens, a sociedade não pode perder este léxico e esta gramática “ que cada criança aprende dos gestos e olhares da mãe e do pai, antes mesmo das suas palavras”.
Gostaria de ilustrar isto com um exemplo concreto. Li algures o episódio de um rapaz canadiano que, todos os dias, levava às costas o seu irmão paralítico para a escola. Certo dia, uma senhora preocupada perguntou-lhe: “Não é demasiado pesado este fardo para ti?” E ele respondeu: “Não é um fardo; é meu irmão!”.
Num mundo onde tudo se vende e tudo se compra, onde se tende a medir o valor das relações humanas em termos de rendimento, utilidade e eficiência, a família aparece como uma reserva profética dos valores da gratuidade, da fraternidade, do acolhimento do outro, do diálogo, da solidariedade, do sentido do bem comum e da justiça.
A mensagem papal é verdadeiramente uma provocação para o mundo e um desafio para a família. Ao propor a família como “primeira agência de paz” valoriza a sua presença na sociedade de uma maneira nova; por outro lado, convida-nos a ler a comunidade dos homens como grande família humana, não de modo idealista ou sentimental, mas realista e concreto.
 
Para uma nova convivência mundial: a família das nações ou dos povos
 
A linguagem familiar como léxico da paz não é só da esfera privada. Na era da globalização, entre tantas dificuldades, o mundo tem necessidade de pensar-se como família. Fazê-lo a partir da célula fundamental da sociedade internacional dá vida e conteúdo humanos à globalização.
Para uma correcta relação entre os povos é pois necessário deixar-se inspirar pelo conceito de “família das nações” ou dos povos, já lançado por João Paulo II, na ONU, em 1995. O conceito de família, como vimos, evoca algo que vai mais para além das simples relações funcionais ou da mera convergência de interesses. Implica laços profundos de fraternidade, solidariedade, apoio recíproco, respeito sincero que devem guiar as relações entre os povos. Bento XVI esclarece: “É necessário saber dizer o “sim” pessoal a esta vocação que Deus inscreveu na nossa própria natureza. Não vivemos uns ao lado dos outros por acaso; todos estamos percorrendo um mesmo caminho como homens e, por isso, como irmãos e irmãs… Sem este fundamento transcendente, a sociedade é apenas uma agregação de vizinhos e não uma comunidade de irmãos e irmãs, chamados a formar uma grande família” (n.6).
Assumir esta perspectiva requer, de todos nós, um sentido profundo e cristão de pertença ao género humano. Recordo, a propósito, as palavras de um monge, conhecido escritor, Thomas Merton: “Cada homem é uma parte de mim, porque eu sou parte e membro do género humano. Cada cristão faz parte do meu próprio corpo, porque nós todos somos membros de Cristo” (Nenhum homem é uma ilha).
Porém, a categoria de pertença parece cada vez mais estranha à cultura contemporânea, individualista e de interesses de parte. O sentido de pertença – quando existe – é fluido e a prazo. A pertença mútua gera deveres, laços, estabilidade, tradição; nada de mais contrário à cultura líquida da pós-modernidade.
E todavia nada há de mais necessário numa sociedade tão dividida, ferida e conflitual do que a necessidade de atenção, de vínculos solidários, de ajuda recíproca, de amor e sentido de pertença, de um coração universal, para criar uma consciência colectiva de família universal em ordem à paz.
 
A paz assume o nome de defesa do trabalho e de salvaguarda da solidariedade
 
Um outro aspecto da mensagem que merece a nossa reflexão é a referência a uma economia de paz em analogia com a experiência familiar: “A família faz uma autêntica experiência de paz quando a ninguém falta o necessário e o património familiar – fruto do trabalho de alguns, da poupança de outros e da activa colaboração de todos – é bem gerido na solidariedade, sem excessos nem desperdícios” É uma referência singularmente sugestiva para o nosso tempo de globalização da economia.
De facto, o panorama mundial modificou-se profundamente e é cada vez mais dominado pela globalização dos mercados, do capital financeiro especulativo (bolsístico e virtual) e das novas tecnologias, com novas chances e novos riscos.
Em virtude de uma globalização desgovernada, sem o alicerce de valores éticos e espirituais compartilhados, assistimos a um aumento da pobreza, de desigualdades gritantes, de exclusão social de milhões de pessoas.
O próprio trabalho torna-se cada vez mais um “bem escasso” e precário, com consequências dramáticas a nível pessoal e familiar. Neste contexto, a defesa da paz assume o nome de defesa do trabalho e da sua dignidade e de salvaguarda da solidariedade no bem comum que veja empenhados, com audácia criativa, todos os actores: Estado, empresários, sindicatos e cidadãos.
Uma globalização dos mercados e capitais que se funde só no princípio do “mercado autoregulador” e na competitividade das diversas forças põe em risco o futuro dos jovens e das famílias e é um obstáculo à unidade do género humano. “É preciso ter na devida conta a exigência moral de fazer com que a organização económica não obedeça só às duras leis do lucro imediato que podem tornar-se desumanas” (n.10). Porque a sociedade é também família, não pode ser só mercado. O mercado não é tudo!
E como não é só mercado, a comunidade humana também não pode ser um farwest sem lei (ou da lei do mais forte), como bem assinala o Papa, quando apela ao crescimento de uma cultura jurídica universal cujas normas estejam cada vez mais impregnadas de conteúdo profundamente humano.
 
Mobilização global a favor do desarmamento e da desmilitarização
 
Por fim, a mensagem papal fala das “densas sombras” que pairam sobre o futuro da humanidade, das tensões e conflitos crescentes. E recorda a África, o Médio Oriente e o aumento da corrida aos armamentos. Para compreender o estado actual desta corrida armamentista é bom ter presente que a despesa militar de 2006 foi de 1.204 biliões de dólares. Significa um aumento médio de 37% no decénio de 1997-2006: a despesa mais alta até agora registada, mesmo em relação ao período da chamada “guerra fria”. Eis porque, face a este escândalo, o Papa faz um apelo do coração a uma mobilização global de todas as pessoas de boa vontade a favor de “uma eficaz desmilitarização, sobretudo das armas nucleares”.
 
Estando atentos, é verdade que não podemos dizer que estamos no melhor dos mundos. Mas o Santo Padre oferece-nos uma calorosa mensagem de esperança apelando às melhores reservas espirituais e morais que existem nas famílias para testemunharmos uma maior consciência da unidade da grande família humana como alicerce e espiritualidade da paz no mundo.
 
“Senhor Jesus, concede-nos acolher a tua paz, concede-nos fazê-la florescer sobre a terra e dar-lhe uma figura viva e irradiante nas nossas famílias e nas nossas comunidades. Faz com que em Ti nos redescubramos todos irmãos, todos filhos do mesmo Pai, para fazer da humanidade uma só grande família que saiba viver em paz, sob a protecção maternal de Maria, Rainha da paz. Ámen!”
 
Leiria, 1 de Janeiro de 2008
+ António Marto, Bispo de Leiria-Fátima
 
 
 
 
 
 
 
 
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