11 de dezembro, 2008
Combater a pobreza para conquistar a paz 1. Desejo, também no Início deste novo ano, fazer chegar os meus votos de paz a todos e, com esta minha Mensagem, convidá-los a reflectir sobre o tema: Combater a pobreza, construir a paz. Já o meu venerado antecessor João Paulo II, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, sublinhara as repercussões negativas que acaba por ter sobre a paz a situação de pobreza em que versam populações inteiras. De facto, a pobreza encontra-se frequentemente entre os factores que favorecem ou agravam os conflitos, mesmo os conflitos armados. Estes últimos, por sua vez, alimentam trágicas situações de pobreza. «Vai-se afirmando (...), com uma gravidade sempre maior – escrevia João Paulo II –, outra séria ameaça à paz: muitas pessoas, mais ainda, populações inteiras vivem hoje em condições de extrema pobreza. A disparidade entre ricos e pobres tornou-se mais evidente, mesmo nas nações economicamente mais desenvolvidas. Trata-se de um problema que se impõe à consciência da humanidade, visto que as condições em que se encontra um grande número de pessoas são tais que ofendem a sua dignidade natural e, consequentemente, comprometem o autêntico e harmónico progresso da comunidade mundial».1 2. Neste contexto, combater a pobreza implica uma análise atenta do fenómeno complexo que é a globalização. Tal análise é já importante do ponto de vista metodológico, porque convida a pôr em prática o fruto das pesquisas realizadas pelos economistas e sociólogos sobre tantos aspectos da pobreza. Mas a evocação da globalização deveria revestir também um significado espiritual e moral, solicitando a olhar os pobres bem cientes da perspectiva que todos somos participantes de um único projecto divino: chamados a constituir uma única família, na qual todos – indivíduos, povos e nações – regulem o seu comportamento segundo os princípios de fraternidade e responsabilidade. Em tal perspectiva, é preciso ter uma visão ampla e articulada da pobreza. Se esta fosse apenas material, para iluminar as suas principais características, seriam suficientes as ciências sociais que nos ajudam a medir os fenómenos baseados sobretudo em dados de tipo quantitativo. Sabemos porém que existem pobrezas imateriais, isto é, que não são consequência directa e automática de carências materiais. Por exemplo, nas sociedades ricas e avançadas, existem fenómenos de marginalização, pobreza relacional, moral e espiritual: trata-se de pessoas desorientadas interiormente, que, apesar do bem-estar económico, vivem diversas formas de transtorno. Penso, por um lado, no chamado « subdesenvolvimento moral » 2 e, por outro, nas consequências negativas do « superdesenvolvimento ».3 Não esqueço também que muitas vezes, nas sociedades chamadas «pobres», o crescimento económico é entravado por impedimentos culturais, que não permitem uma conveniente utilização dos recursos. Seja como for, não restam dúvidas de que toda a forma de pobreza imposta tem, na sua raiz, a falta de respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana. Quando o homem não é visto na integridade da sua vocação e não se respeitam as exigências duma verdadeira «ecologia humana »,4 desencadeiam-se também as dinâmicas perversas da pobreza, como é evidente em alguns âmbitos sobre os quais passo a deter brevemente a minha atenção. Pobreza e implicações morais 3. A pobreza aparece muitas vezes associada, como se fosse sua causa, com o desenvolvimento demográfico. Em consequência disso, realizam-se campanhas de redução da natalidade, promovidas a nível internacional, até com métodos que não respeitam a dignidade da mulher nem o direito dos esposos a decidirem responsavelmente o número dos filhos 5 e que muitas vezes – facto ainda mais grave – não respeitam sequer o direito à vida. O extermínio de milhões de nascituros, em nome da luta à pobreza, constitui na realidade a eliminação dos mais pobres dentre os seres humanos. Contra tal presunção, fala o dado seguinte: enquanto, em 1981, cerca de 40% da população mundial vivia abaixo da linha de pobreza absoluta, hoje tal percentagem aparece substancialmente reduzida a metade, tendo saído da pobreza populações caracterizadas precisamente por um incremento demográfico notável. O dado agora assinalado põe em evidência que existiriam os recursos para se resolver o problema da pobreza, mesmo no caso de um crescimento da população. E não se há-de esquecer que, desde o fim da segunda guerra mundial até hoje, a população da terra cresceu quatro mil milhões e tal fenómeno diz respeito, em larga medida, a países que surgiram recentemente na cena internacional como novas potências económicas e conheceram um rápido desenvolvimento graças precisamente ao elevado número dos seus habitantes. Além disso, dentre as nações que mais se desenvolveram, aquelas que detêm maiores índices de natalidade gozam de melhores potencialidades de progresso. Por outras palavras, a população confirma-se como uma riqueza e não como um factor de pobreza. 4. Outro âmbito de preocupação são as pandemias, como por exemplo a malária, a tuberculose e a SIDA, pois, na medida em que atingem os sectores produtivos da população, influem enormemente no agravamento das condições gerais do país. As tentativas para travar as consequências destas doenças na população nem sempre alcançam resultados significativos. E sucede além disso que os países afectados por algumas dessas pandemias se vêem, ao querer enfrentá-las, sujeitos a chantagem por parte de quem condiciona a ajuda económica à actuação de políticas contrárias à vida. Sobretudo a SIDA, dramática causa de pobreza, é difícil combatê-la se não se enfrentarem as problemáticas morais associadas com a difusão do vírus. É preciso, antes de tudo, fomentar campanhas que eduquem, especialmente os jovens, para uma sexualidade plenamente respeitadora da dignidade da pessoa; iniciativas realizadas nesta linha já deram frutos significativos, fazendo diminuir a difusão da SIDA. Depois há que colocar à disposição também das populações pobres os remédios e os tratamentos necessários; isto supõe uma decidida promoção da pesquisa médica e das inovações terapêuticas e, quando for preciso, uma aplicação flexível das regras internacionais de protecção da propriedade intelectual, de modo que a todos fiquem garantidos os necessários tratamentos sanitários de base. 5. Terceiro âmbito, que é objecto de atenção nos programas de luta contra a pobreza e que mostra a sua intrínseca dimensão moral, é a pobreza das crianças. Quando a pobreza atinge uma família, as crianças são as suas vítimas mais vulneráveis: actualmente quase metade dos que vivem em pobreza absoluta é constituída por crianças. O facto de olhar a pobreza colocando-se da parte das crianças induz a reter como prioritários os objectivos que mais directamente lhes dizem respeito, como por exemplo os cuidados maternos, o serviço educativo, o acesso às vacinas, aos cuidados médicos e à água potável, a defesa do ambiente e sobretudo o empenho na defesa da família e da estabilidade das relações no seio da mesma. Quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças. Onde não é tutelada a dignidade da mulher e da mãe, a ressentir-se do facto são de novo principalmente os filhos. 6. Quarto âmbito que, do ponto de vista moral, merece particular atenção é a relação existente entre desarmamento e progresso. Gera preocupação o actual nível global de despesa militar. É que, como já tive ocasião de sublinhar, «os ingentes recursos materiais e humanos empregados para as despesas militares e para os armamentos, na realidade, são desviados dos projectos de desenvolvimento dos povos, especialmente dos mais pobres e necessitados de ajuda. E isto está contra o estipulado na própria Carta das Nações Unidas, que empenha a comunidade internacional, e cada um dos Estados em particular, a ‘‘promover o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacional com o mínimo dispêndio dos recursos humanos e económicos mundiais para os armamentos´´ (art. 26)».6 Uma tal conjuntura, longe de facilitar, obstaculiza seriamente a consecução dos grandes objectivos de desenvolvimento da comunidade internacional. Além disso, um excessivo aumento da despesa militar corre o risco de acelerar uma corrida aos armamentos que provoca faixas de subdesenvolvimento e desespero, transformando-se assim, paradoxalmente, em factor de instabilidade, tensão e conflito. Como sensatamente afirmou o meu venerado antecessor Paulo VI, «o desenvolvimento é o novo nome da paz ».7 Por isso, os Estados são chamados a fazer uma séria reflexão sobre as razões mais profundas dos conflitos, frequentemente atiçados pela injustiça, e a tomar providências com uma corajosa autocrítica. Se se chegar a uma melhoria das relações, isso deverá consentir uma redução das despesas para armamentos. Os recursos poupados poderão ser destinados para projectos de desenvolvimento das pessoas e dos povos mais pobres e necessitados: o esforço despendido em tal direcção é um serviço à paz no seio da família humana. 7. Quinto âmbito na referida luta contra a pobreza material diz respeito à crise alimentar actual, que põe em perigo a satisfação das necessidades de base. Tal crise é caracterizada não tanto pela insuficiência de alimento, como sobretudo pela dificuldade de acesso ao mesmo e por fenómenos especulativos e, consequentemente, pela falta de um reajustamento de instituições políticas e económicas que seja capaz de fazer frente às necessidades e às emergências. A má nutrição pode também provocar graves danos psicofísicos nas populações, privando muitas pessoas das energias de que necessitam para sair, sem especiais ajudas, da sua situação de pobreza. E isto contribui para alargar a distância angular das desigualdades, provocando reacções que correm o risco de tornar-se violentas. Todos os dados sobre o andamento da pobreza relativa nos últimos decénios indicam um aumento do fosso entre ricos e pobres. Causas principais de tal fenómeno são, sem dúvida, por um lado a evolução tecnológica, cujos benefícios se concentram na faixa superior da distribuição do rendimento, e por outro a dinâmica dos preços dos produtos industriais, que crescem muito mais rapidamente do que os preços dos produtos agrícolas e das matérias primas na posse dos países mais pobres. Isto faz com que a maior parte da população dos países mais pobres sofra uma dupla marginalização, ou seja, em termos de rendimentos mais baixos e de preços mais altos. Luta contra a pobreza e solidariedade global 8. Uma das estradas mestras para construir a paz é uma globalização que tenha em vista os interesses da grande família humana.8 Mas, para guiar a globalização é preciso uma forte solidariedade global 9 entre países ricos e países pobres, como também no âmbito interno de cada uma das nações, incluindo ricas. É necessário um «código ético comum »,10 cujas normas não tenham apenas carácter convencional mas estejam radicadas na lei natural inscrita pelo Criador na consciência de todo o ser humano (cf. Rm 2, 14-15). Porventura não sente cada um de nós, no íntimo da consciência, o apelo a dar a própria contribuição para o bem comum e a paz social? A globalização elimina determinadas barreiras, mas isto não significa que não possa construir outras novas; aproxima os povos, mas a proximidade geográfica e temporal não cria, de per si, as condições para uma verdadeira comunhão e uma paz autêntica. A marginalização dos pobres da terra só pode encontrar válidos instrumentos de resgate na globalização, se cada homem se sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações dos direitos humanos ligadas com elas. A Igreja, que é «sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano »,11 continuará a dar a sua contribuição para que sejam superadas as injustiças e incompreensões e se chegue a construir um mundo mais pacífico e solidário. 9. No campo do comércio internacional e das transacções financeiras, temos hoje em acção processos que permitem integrar positivamente as economias, contribuindo para o melhoramento das condições gerais; mas há também processos de sentido oposto, que dividem e marginalizam os povos, criando perigosas premissas para guerras e conflitos. Nos decénios posteriores à segunda guerra mundial, o comércio internacional de bens e serviços cresceu de forma extraordinariamente rápida, com um dinamismo sem precedentes na história. Grande parte do comércio mundial interessou os países de antiga industrialização, vindo significativamente juntar-se-lhes muitos países que sobressaíram tornando-se relevantes. Mas há outros países de rendimento baixo que estão ainda gravemente marginalizados dos fluxos comerciais. O seu crescimento ressentiu-se negativamente com a rápida descida verificada, nos últimos decénios, nos preços dos produtos primários, que constituem a quase totalidade das suas exportações. Nestes países, em grande parte africanos, a dependência das exportações de produtos primários continua a constituir um poderoso factor de risco. Quero reiterar aqui um apelo para que todos os países tenham as mesmas possibilidades de acesso ao mercado mundial, evitando exclusões e marginalizações. 10. Idêntica reflexão pode fazer-se a propósito do mercado financeiro, que toca um dos aspectos primários do fenómeno da globalização, devido ao progresso da electrónica e às políticas de liberalização dos fluxos de dinheiro entre os diversos países. A função objectivamente mais importante do mercado financeiro, que é a de sustentar a longo prazo a possibilidade de investimentos e consequentemente de desenvolvimento, aparece hoje muito frágil: sofre as consequências negativas de um sistema de transacções financeiras – a nível nacional e global – baseadas sobre uma lógica de brevíssimo prazo, que busca o incremento do valor das actividades financeiras e se concentra na gestão técnica das diversas formas de risco. A própria crise recente demonstra como a actividade financeira seja às vezes guiada por lógicas puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo. O nivelamento dos objectivos dos operadores financeiros globais para o brevíssimo prazo reduz a capacidade de o mercado financeiro realizar a sua função de ponte entre o presente e o futuro: apoio à criação de novas oportunidades de produção e de trabalho a longo prazo. Uma actividade financeira confinada no breve e brevíssimo prazo torna-se perigosa para todos, inclusivamente para quem consegue beneficiar dela durante as fases de euforia financeira.12 11. Segue-se de tudo isto que a luta contra a pobreza requer uma cooperação nos planos económico e jurídico que permita à comunidade internacional e especialmente aos países pobres individuarem e actuarem soluções coordenadas para enfrentar os referidos problemas através da realização de um quadro jurídico eficaz para a economia. Além disso, requer estímulos para se criarem instituições eficientes e participativas, bem como apoios para lutar contra a criminalidade e promover uma cultura da legalidade. Por outro lado, não se pode negar que, na origem de muitos falimentos na ajuda aos países pobres, estão as políticas vincadamente assistencialistas. Investir na formação das pessoas e desenvolver de forma integrada uma cultura específica da iniciativa parece ser actualmente o verdadeiro projecto a médio e longo prazo. Se as actividades económicas precisam de um contexto favorável para se desenvolver, isto não significa que a atenção se deva desinteressar dos problemas do rendimento. Embora se tenha oportunamente sublinhado que o aumento do rendimento pro capite não pode de forma alguma constituir o fim da acção político-económica, todavia não se deve esquecer que o mesmo representa um instrumento importante para se alcançar o objectivo da luta contra a fome e contra a pobreza absoluta. Deste ponto de vista, seja banida a ilusão de que uma política de pura redistribuição da riqueza existente possa resolver o problema de maneira definitiva. De facto, numa economia moderna, o valor da riqueza depende em medida determinante da capacidade de criar rendimento presente e futuro. Por isso, a criação de valor surge como um elo imprescindível, que se há-de ter em conta se se quer lutar contra a pobreza material de modo eficaz e duradouro. 12. Colocar os pobres em primeiro lugar implica, finalmente, que se reserve espaço adequado para uma correcta lógica económica por parte dos agentes do mercado internacional, uma correcta lógica política por parte dos agentes institucionais e uma correcta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil local e internacional. Hoje os próprios organismos internacionais reconhecem o valor e a vantagem das iniciativas económicas da sociedade civil ou das administrações locais para favorecer o resgate e a integração na sociedade daquelas faixas da população que muitas vezes estão abaixo do limiar de pobreza extrema mas, ao mesmo tempo, dificilmente se consegue fazer-lhes chegar as ajudas oficiais. A história do progresso económico do século XX ensina que boas políticas de desenvolvimento são confiadas à responsabilidade dos homens e à criação de positivas sinergias entre mercados, sociedade civil e Estados. Particularmente a sociedade civil assume um papel crucial em todo o processo de desenvolvimento, já que este é essencialmente um fenómeno cultural e a cultura nasce e se desenvolve nos diversos âmbitos da vida civil.13 13. Como observava o meu venerado antecessor João Paulo II, a globalização «apresenta-se com uma acentuada característica de ambivalência»,14 pelo que há- de ser dirigida com clarividente sabedoria. Faz parte de tal sabedoria ter em conta primariamente as exigências dos pobres da terra, superando o escândalo da desproporção que se verifica entre os problemas da pobreza e as medidas predispostas pelos homens para os enfrentar. A desproporção é de ordem tanto cultural e política como espiritual e moral. De facto, tais medidas detêm-se frequentemente nas causas superficiais e instrumentais da pobreza, sem chegar às que se abrigam no coração humano, como a avidez e a estreiteza de horizontes. Os problemas do desenvolvimento, das ajudas e da cooperação internacional são às vezes enfrentados sem um verdadeiro envolvimento das pessoas, mas apenas como questões técnicas que se reduzem à preparação de estruturas, elaboração de acordos tarifários, atribuição de financiamentos anónimos. Inversamente, a luta contra a pobreza precisa de homens e mulheres que vivam profundamente a fraternidade e sejam capazes de acompanhar pessoas, famílias e comunidades por percursos de autêntico progresso humano. Conclusão 14. Na Encíclica Centesimus annus, João Paulo II advertia para a necessidade de «abandonar a mentalidade que considera os pobres – pessoas e povos – como um fardo e como importunos maçadores, que pretendem consumir tudo o que os outros produziram». «Os pobres – escrevia ele – pedem o direito de participar no usufruto dos bens materiais e de fazer render a sua capacidade de trabalho, criando assim um mundo mais justo e mais próspero para todos».15 No mundo global de hoje, resulta de forma cada vez mais evidente que só é possível construir a paz, se se assegurar a todos a possibilidade de um razoável crescimento: de facto, as consequências das distorções de sistemas injustos, mais cedo ou mais tarde, fazem-se sentir sobre todos. Deste modo, só a insensatez pode induzir a construir um palácio dourado, tendo porém ao seu redor o deserto e o degrado. Por si só, a globalização não consegue construir a paz; antes, em muitos casos, cria divisões e conflitos. A mesma põe a descoberto sobretudo uma urgência: a de ser orientada para um objectivo de profunda solidariedade que aponte para o bem de cada um e de todos. Neste sentido, a globalização há-de ser vista como uma ocasião propícia para realizar algo de importante na luta contra a pobreza e colocar à disposição da justiça e da paz recursos até agora impensáveis. 15. Desde sempre se interessou pelos pobres a doutrina social da Igreja. Nos tempos da Encíclica Rerum novarum, pobres eram sobretudo os operários da nova sociedade industrial; no magistério social de Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, novas pobrezas foram vindo à luz à medida que o horizonte da questão social se alargava até assumir dimensões mundiais.16 Este alargamento da questão social à globalidade não deve ser considerado apenas no sentido duma extensão quantitativa mas também dum aprofundamento qualitativo sobre o homem e as necessidades da família humana. Por isso a Igreja, ao mesmo tempo que segue com atenção os fenómenos actuais da globalização e a sua incidência sobre as pobrezas humanas, aponta os novos aspectos da questão social, não só em extensão mas também em profundidade, no que se refere à identidade do homem e à sua relação com Deus. São princípios de doutrina social que tendem a esclarecer os vínculos entre pobreza e globalização e a orientar a acção para a construção da paz. Dentre tais princípios, vale a pena recordar aqui, de modo particular, o «amor preferencial pelos pobres»,17 à luz do primado da caridade testemunhado por toda a tradição cristã a partir dos primórdios da Igreja (cf. Act 4, 32-37; 1 Cor 16, 1; 2 Cor 8-9; Gal 2, 10). «Cada um entregue-se à tarefa que lhe incumbe com a maior diligência possível » – escrevia em 1891 Leão XIII, acrescentando: «Quanto à Igreja, a sua acção não faltará em nenhum momento».18 Esta consciência acompanha hoje também a acção da Igreja em favor dos pobres, nos quais vê Cristo,19 sentindo ressoar constantemente em seu coração o mandato do Príncipe da paz aos Apóstolos: «Vos date illis manducare – dai-lhes vós mesmos de comer» (Lc 9, 13). Fiel a este convite do seu Senhor, a Comunidade Cristã não deixará, pois, de assegurar o seu apoio à família humana inteira nos seus impulsos de solidariedade criativa, tendentes não só a partilhar o supérfluo, mas sobretudo a alterar «os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades».20 Assim, a cada discípulo de Cristo bem como a toda a pessoa de boa vontade, dirijo, no início de um novo ano, um caloroso convite a alargar o coração às necessidades dos pobres e a fazer tudo o que lhe for concretamente possível para ir em seu socorro. De facto, aparece como indiscutivelmente verdadeiro o axioma «combater a pobreza é construir a paz». Vaticano, 8 de Dezembro de 2008. TIPOGRAFIA VATICANA 1 Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1993, 1. 2 Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 19. 3 João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 28. 4 João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 38. 5 Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 37; João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 25. 6 Bento XVI, Carta ao Cardeal Renato Rafael Martino por ocasião do Seminário Internacional organizado pelo Conselho Pontifício « Justiça e Paz » sobre o tema « Desarmamento, desenvolvimento e paz. Perspectivas para um desarmamento integral » (10 de Abril de 2008): L´Osservatore Romano (13/IV/2008), p. 8. 7 Carta enc. Populorum progressio, 87. 8 Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 58. 9 Cf. João Paulo II, Discurso na Audiência às Associações Cristãs de Trabalhadores Italianos [ACLI] (27 de Abril de 2002), 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXV/1 [2002], 637. 10 João Paulo II, Discurso à Assembleia Plenária da Academia Pontifícia das Ciências Sociais (27 de Abril de 2001), 4: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIV/1 [2001], 802. 11 Concílio Ecum. Vaticano II, Const. dogm. Lumen gentium, 1. 12 Cf. Conselho Pontifício «Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 368. 13 Cf. ibid., 356. 14 Discurso na Audiência a Dirigentes de Sindicatos de Trabalhadores e de grandes Empresas (2 de Maio de 2000), 3: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIII/1 [2000], 726. 15 N. 28. 16 Cf. Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio, 3. 17 João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis, 42; cf. Carta enc. Centesimus annus, 57. 18 Leão XIII, Carta enc. Rerum novarum, 45. 19 Cf. João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus, 58. 20 Ibid., 58. |