28 de maio, 2009
Peregrinação de 12 e 13 de Junho 2009 – Fátima
Celebração do dia 13 de Junho
Homilia
Caros Peregrinos Perante a perplexidade, a curiosidade e a universalidade que a pergunta dos Apóstolos desperta acerca da restauração do reino de Israel, que de algum modo sintetiza as grandes questões universais acerca da orientação da humanidade para um bem comum, Jesus promete-lhes o envio do Espírito Santo. Os Apóstolos, na nova forma de relação com Jesus Cristo que advém da Ascensão, sentem a necessidade de voltar aos locais da intimidade com Jesus, nos quais o Mestre revelou a profundidade da sua relação com eles, a transcendência da sua missão e o audacioso envio que, pela acção do Espírito Santo, a Igreja, ao longo da história, experimentaria em todos os seus membros. Maria, a Mãe de Jesus, está presente. Ela é agora a Mãe da Igreja nascente que acompanhará os Apóstolos com a mesma intensidade e afecto materno com que acompanhou o seu Filho. Hoje, somos nós, também, a colocar-nos na experiência do mistério pascal de Cristo, através dos sinais que Ele mesmo deixou à sua Igreja, na participação da Ceia Pascal, no caminho da renovação que a cruz provoca, na experiência do Espírito Santo derramado. Maria, a Mãe de Jesus, está connosco. É precisamente neste contexto que a Igreja perscruta os sinais reveladores de Deus para que possa encontrar resposta às grandes inquietações da humanidade. É oportuno recordar as palavras do Santo Padre, Bento XVI, na Páscoa deste ano. Diz ele: «O núncio da ressurreição do Senhor ilumina as zonas escuras do mundo em que vivemos. Refiro-me de modo particular ao materialismo e ao niilismo, àquela visão do mundo que não sabe transcender o que é experimentalmente constatável e refugia-se desconsolada num sentimento de que o nada seria a meta definitiva da existência humana». Na linguagem de S. Lucas, na cena apresentada no Evangelho, Maria, a Mãe de Jesus, juntamente com os familiares, irrompe do meio da multidão para se vir encontrar com o Seu Filho. Sim, Maria de Nazaré, se por um lado, junto da Cruz, é entregue aos discípulos para com eles iniciar a nova aventura da missão de Jesus Cristo, através da Igreja, por outro, ela é a Mulher que sobressai do meio da multidão dos homens e das mulheres de todos os tempos para se colocar perante o Salvador, não apenas ela, com o olhar contemplativo do Mistério da Graça e da Vida de Deus, mas com o coração de Mãe que quer trazer junto do seu Filho todas as inquietações e angústias, as dúvidas e as misérias da humanidade. «Se é verdade – diz Bento XVI – que a morte já não tem poder sobre o homem e sobre o mundo, todavia restam ainda muitos, demasiados sinais do seu antigo domínio. Se, por meio da Páscoa, Cristo já extirpou a raiz do mal, todavia precisa de homens e mulheres que, em todo o tempo e lugar, O ajudem a consolidar a sua vitória com as mesmas armas d’Ele: as armas da justiça e da verdade, da misericórdia, do perdão e do amor» . Nós fazemos parte desta multidão que é abraçada pelo coração de Maria, Nossa Senhora. É significativo que Jesus, ao ser-lhe apresentado o desejo da sua família de O ver, ele mesmo, a transforme num horizonte universal. A verdadeira família de Jesus Cristo é formada por todos aqueles que escutam a Palavra de Deus e a colocam na prática. Afinal, com a irrupção do Mistério de Cristo no meio do mundo, a criação toma novo significado e as relações familiares, mesmo as mais nobres e íntimas, tomam uma nova profundidade a partir de Deus que, em Jesus Cristo, se revela com a única paternidade que transmite o sentido novo a tudo o que existe. É desta novidade que nos fala S. Paulo na Carta aos Gálatas. Segundo ele, aqueles que fazem a experiência do Espírito, e portanto são de Cristo, «crucificaram a carne com as suas paixões e apetites». Deste modo, Paulo que é um incansável promotor da verdadeira liberdade humana, convida à experiência libertadora que em cada pessoa se realiza, sempre que se assume o mistério Pascal de Cristo. A finalidade é a nova criação, a humanidade nova, o homem e a mulheres renovados, mas tal não se alcança sem a conversão da mente e do coração. Mais ainda, aquele que alcançou a liberdade na sua autenticidade, que lhe é oferecida pelo Espirito Santo, não deve deixar de caminhar nela. Isto significa, que é uma caminhada permanente, sob pena de se desviar e de a adulterar. O lema do Santuário, ao convidar a todos a viver o 9º Mandamento da Lei de Deus «os puros de coração verão a Deus» que traduz também uma das Bem-aventuranças, insere-se aqui, na docilidade ao Espírito Santo. A possibilidade de «ver» a Deus marcou a caminhada da humanidade de todos os tempos e marcou o drama do pensamento moderno e contemporâneo. Situados apenas nas possibilidades da razão como possibilidade de conhecimento, a pessoa humana, progressivamente, foi afastando a sua capacidade racional do confronto com o mistério divino que, através da revelação, oferece à criatura a orientação e o desafio, muitas vezes árduo, da busca da verdade, isto é, da busca de Deus. Após tempos de angustiosa busca da verdade, passou-se a uma situação generalizada de alheamento perante o que são valores absolutos e, consequentemente, já não só a tomar uma atitude de indiferença perante Deus, mas desvalorizando de tal forma o homem que este é visto simplesmente na sua dimensão horizontal à mercê de todas as tendências de opinião. Cedo se passa para um relativismo moral e para uma instrumentalização da pessoa humana. O avassalador «nada» característico da nossa cultura está a lançar os seus tentáculos e a destruir progressivamente o homem. As análises estão feitas e as consequências estão bem patentes na crise de valores, que caracteriza a situação social actual, que infelizmente afecta tantos dos nossos contemporâneos. «Num tempo de global escassez de alimento, de desordem financeira, de antigas e novas pobrezas, de preocupantes alterações climáticas, de violências e miséria que constringem muitos a deixar a sua terra à procura duma sobrevivência menos incerta, de terrorismo sempre ameaçador, de temores crescentes perante a incerteza do amanhã, é urgente descobrir perspectivas capazes de devolverem a esperança» . Isto é, importa encontrar outro sentido para a nossa existência. Bento XVI, no discurso para a Universidade de La Sapienza, afirma-o deste modo: «Verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem (...)A verdade torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive a fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade». Olhando para o desenvolvimento actual, afirma o Papa que com ele, «abriu-se à humanidade não apenas uma medida imensa de saber e de poder; mas aumentaram também o conhecimento e o reconhecimento dos direitos e da dignidade do homem (...) No entanto, o caminho do homem jamais pode dizer-se completo, e o perigo de cair na desumanidade nunca está esconjurado de todo: como se vê no panorama da história actual». De entre os múltiplos perigos que experimenta o homem actual, o Papa realça que o maior de todos é que «o homem hoje, precisamente à vista da grandeza do seu saber e do seu poder, desista diante da questão da verdade; significando isto ao mesmo tempo que, no fim de contas, a razão cede face à pressão dos interesses e á atracção da utilidade, obrigada a reconhecê-La como critério derradeiro». Por seu lado, como afirma o Concílio, «a Igreja afirma que o reconhecimento de Deus não se opõe de forma alguma à dignidade humana, porque esta dignidade encontra no próprio Deus o seu fundamento e a sua perfeição». E, continua, «com efeito, o homem foi constituído inteligente e livre, em sociedade, por Deus Criador; mas sobretudo como filho, é chamado à comunhão com Deus e a participar da sua própria felicidade». Conclui, dizendo que «a Igreja ensina (...) que a esperança escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, antes salienta a importância da sua realização com novos motivos». Adverte, ainda, o concilio que «quando falta o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade do homem é gravissimamente lesada, como se verifica frequentemente em nosso dias, e fica sem solução o enigma da vida e da morte, do pecado e do sofrimento, de tal modo que não raro, os homens caem no desespero» (GS, 21). Porque o homem é para si mesmo um problema sem solução, «só Deus lhe pode responder plenamente e com toda a segurança. Ele que chama o homem a uma reflexão mais profunda e a uma procura mais humilde»(GS, 21). Na mensagem dirigida aos jovens, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, deste ano, Bento XVI adverte os jovens para a crise da esperança. Diz ele: «penso em tantos coetâneos vossos, feridos pela vida, condicionados por uma imaturidade pessoal que muitas vezes é consequência de um vazio familiar, de opções educativas permissivas e libertinárias e de experiências negativas e traumáticas. Para alguns e infelizmente não são poucos a saída quase obrigatória é uma fuga alienante com comportamentos de risco e violentos, na dependência de drogas e álcool, e em muitas outras formas de mal-estar juvenil». Na certeza que também estes mergulhados na desorientação e na indignidade humana, buscam a felicidade, pergunta-se, como anunciar a esperança a estes jovens? Por isso, continua o Papa, «nós sabemos que só em Deus o ser humano encontra a sua verdadeira realização. O compromisso primário que interpela todos é, portanto, o de uma nova evangelização, que ajude as novas gerações a redescobrir o rosto autêntico de Deus, que é Amor» . É esta certeza que leva a Igreja a afirmar que «a sua mensagem está de acordo com os anseios mais profundos do coração humano, quando defende a dignidade da vocação do homem, restituindo a esperança àqueles que já desesperam do seu destino mais nobre. A sua mensagem, longe de diminuir o homem, difunde, para o seu progresso, luz, vida e liberdade, e fora dessa mensagem nada pode satisfazer o coração humano: “fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti”» (GS 21). A Igreja, no cumprimento da sua missão, «tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e de os interpretar à luz do Evangelho, de tal sorte que possa responder, de um modo adequado a cada geração, às perenes interrogações dos homens sobre o sentido da vida presente e futura e sobre a sua relação recíproca. Importa, por conseguinte, conhecer e compreender este mundo no qual vivemos, as suas esperanças, as suas aspirações, a sua indole frequentemente dramática»(GS, 4). É precisamente à luz do Verbo Encarnado, que revela o homem ao próprio homem, que a Igreja ausculta o que Deus Criador e Redentor quer oferecer para a libertação integral dos seus filhos. O Concílio conduz-nos no reconhecimento de que estamos hoje numa idade nova da história do género humano, caracterizada por mudanças profundas e rápidas que se estendem gradualmente ao mundo inteiro. São provocadas pela inteligência do homem e pela sua actividade criadora e têm reflexos profundos na vida e no ser do próprio homem, nos seus juízos, nos seus desejos individuais e colectivos, no seu modo de pensar e de agir. Estamos perante uma transformação cultural que bem se pode chamar de metamorfose social e cultural, com efeitos profundos na vida religiosa. Chama-lhe crise de crescimento e, como tal, acarreta consigo sérias dificuldades. Deste modo, afirmam os Padres Conciliares: «enquanto o homem amplia extraordinariamente o seu poder, nem sempre consegue pô-lo ao seu serviço. Esforçando-se por penetrar sempre mais na sua intimidade espiritual, com frequência se manifesta mais incerto de si mesmo. Descobre aos poucos, e sempre com maior clareza, as leis da vida social, mas hesita sobre as orientações que importa dar-lhe» (GS, 4). Já o Concílio descreveu as ambiguidades sócio-culturais que vive o mundo contemporâneo. Por isso, diz: «Oprimidos por uma situação tão complexa, muitos dos nosso contemporâneos estão impedidos de descobrir verdadeiramente os valores perenes e, ao mesmo tempo, de os harmonizar com as descobertas recentes; por isso, vivem cheios de inquietação, agitados entre a esperança e o temor, interrogando-se sobre a evolução do mundo contemporâneo» (GS, 4). Esta realidade cultural, complexa, com tanta perplexidade e ambiguidade, onde incidem factores fracturantes sobre os valores e os critérios que harmonizam o homem e a sociedade, tem repercussões na vida religiosa. Assim o reconhece o Vaticano II, ao sublinhar: «Por um lado, o espirito crítico purifica a vida religiosa de uma concepção mágica do mundo e de superstições que vão sobrevivendo, e exige uma adesão à fé cada vez mais pessoal e actuante, o que faz que não poucos atinjam um sentido mais vivo de Deus. Por outro lado, multidões cada vez mais numerosas afastam-se, na prática, da religião» (GS, 7). Reconhecem, os Padres conciliares, que «recusar Deus ou a religião, não se preocupar com isso, não é, ao contrário de outros tempos, um facto excepcional e individual: hoje, com efeito, tal atitude é frequentemente apresentada como uma exigência do progresso científico ou de um qualquer humanismo» (GS, 7). E concluem que «em numerosas regiões, tudo isto não se exprime só ao nível filosófico; afecta também, e em muita larga escala, a literatura e a arte, a concepção das ciências do homem e da história e as próprias leis civis de tal modo que muitos se perturbam com isso» (GS, 7). A Igreja, em todos os seus membros, é convidada a testemunhar a verdade de Deus para servir a verdade do homem. Como afirma João Paulo II: «O homem é o caminho da Igreja», mas o homem entendido na abrangência e na riqueza do seu ser, criado à imagem e semelhança de Deus e a Ele continuamente relacionado. Só com a experiência de um coração purificado, límpido da cegueira do pecado, liberto da unilateralidade das ideologias, resgatado às escravidões do mundo, o homem poderá gozar da autêntica liberdade para a qual Jesus Cristo o resgatou. Deixemo-nos conduzir até aos lugares da intimidade com Jesus Cristo, onde se celebra permanentemente a Ceia Pascal de Cristo, para aí, pela acção do Espírito Santo, escutarmos a voz que convida a sermos testemunhas de Jesus Redentor até aos confins da terra. Irmanados com toda a humanidade, com a qual fazemos parte desta multidão, através da qual Nossa Senhora irrompe, levando consigo as nossas angústias e sofrimentos, perplexidades e anseios, e tornando-nos presentes a seu Filho, que nos transforma em sua família, pela escuta e pela prática da Sua Palavra. Sejamos dignos da nossa condição de filhos de Deus. Imploremos de Nossa Senhora de Fátima, dos beatos Francisco e Jacinta, que nos alcancem de Jesus a benção para as nossas famílias, crianças, jovens, idosos e para todos os que sofrem. Amen + João Lavrador Bispo Auxiliar do Porto |