28 de maio, 2009

Peregrinação de 12 e 13 de Junho 2009 – Fátima
Celebração do dia 12 de Junho 
Homilia:
Caros Peregrinos
         «Se alguém tem sede venha a Mim e beba». Com este convite, Jesus Cristo identifica-se não só com o Pai que, no deserto, atento à súplica de Moisés, fez jorrar a água que matou a sede ao Povo em demanda da terra prometida, mas Ele mesmo possui o dom capaz de saciar a sede de todo o ser humano, como Ele mesmo exprimiu à Samaritana: «Se conhecesses o dom de Deus(...)tu é que lhe terias pedido, e Ele dar-te-ia uma água viva» (Jo.4, 10). E, Jesus sublinha, ainda, que tipo de água é esta que ele oferece: «quem bebe desta água voltará a ter sede; mas quem beber da água que Eu lhe der jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna» (Jo. 4, 13 –14).
         O ser humano é sedento de verdade, de bem, do belo, da justiça e do amor, o ser humano é sedento de Deus. Não lhe basta fazer a experiência de matar a sede do seu ser através de um conjunto de actos exteriores, ele tem necessidade de uma comunhão de vida com a fonte, ou nascente, onde jorra o manancial de água que sacia plenamente a sua sede.
         É esta participação na comunhão com Deus que Jesus oferece pelo dom permanente do Espírito Santo. Como afirma João Paulo II: «O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se não se encontra com o amor, se não o experimenta e o não torna algo de si próprio, se nele não participa vivamente» (R H, 10). Por isso, Jesus Cristo na sua redenção, não só revela o homem ao próprio homem, mas também o homem experimenta a sua grandeza, a dignidade e o valor próprio da sua humanidade. Deste modo, continua João Paulo II, «no mistério da redenção o homem é novamente “confirmado” e, de algum modo, é novamente criado» (RH, 10). Para concluir, dizendo, se o homem quiser compreender-se a si mesmo profundamente, deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. E, o saudoso Papa diz mesmo «deve, por assim dizer, entrar nEle com tudo o que é em si mesmo, deve “apropriar-se” e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para se encontrar a si mesmo» (RH, 10). Quando se verificar este processo profundo, então o homem produz frutos não só de adoração a Deus, mas de profunda maravilha perante si mesmo.
         «A Igreja, tendo em conta Cristo e a razão do seu mistério que constitui a vida própria da Igreja, não pode permanecer insensível a tudo o que serve ao verdadeiro bem do homem, como tão pouco pode permanecer indiferente ao que o ameaça» (RH, 13). Estas são palavras de João Paulo II, logo ao inicio do seu pontificado e bem demonstram o serviço da Igreja ao homem concreto, histórico, porque o ser humano é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma. A Igreja, fiel a Cristo, não pode abandonar o homem, cuja eleição, chamamento, nascimento e morte, salvação ou perdição, estão estreitamente unidos a Cristo. Trata-se da verdade do homem que só perante o mistério do Verbo Encarnado se descobre.
         O homem é o caminho da Igreja. Por isso, ela está atenta à situação do homem, aos seus êxitos e aos seus fracassos, às suas conquistas e às suas ameaças. Numa palavra, a Igreja deve estar bem consciente de tudo aquilo que é contrário ao processo de nobilitação da vida humana (cfr. RH, 14).
         A Igreja reconhece que o progresso e o desenvolvimento da civilização do nosso tempo, assinalado pelo predomínio da técnica, exigem proporcional desenvolvimento da moral e da ética. Neste contexto, uma pergunta sobressai: será que o progresso da inteligência tem tornado a vida humana, em todos os seus aspectos, mais humana? Ou seja, mais digna do homem? A resposta só poderá ser uma e só será afirmativa «se o homem enquanto homem, no ambiente do actual progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para os outros, especialmente para os mais necessitados e mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos» (RH, 15). Importa lembrar um principio importantíssimo que o Concílio ofereceu para a leitura do verdadeiro progresso, referindo-se ao domínio que o homem exerce sobre o mundo visível, que lhe foi confiado pelo Criador, que só se dará na prioridade da ética sobre a técnica, no primado da pessoa sobre as coisas, na superioridade do espírito sobre a matéria (cfr. RH, 16). Numa palavra, urge gritar ao homem de hoje, tratar-se, não tanto de ter mais, mas de ser mais.
         Mas o Evangelho refere que «do seio daquele que acredite em Mim, correrão rios de água viva». Com estas palavras, Jesus Cristo não só promete que sacia a sede de toda a pessoa sequiosa, mas responsabiliza-nos a nós, cristãos, em primeiro lugar, por sermos dispensadores da «verdadeira água» capaz de saciar a sede dos nossos contemporâneos. Quem pode saciar o ser humano? Só Cristo. Tal como Ele mesmo se revelou e como quis ficar presente na Igreja e no mundo. Eis o primeiro serviço ao homem de hoje: a fidelidade. Assim o sentiu S. Paulo ao reconhecer que, embora interpelado por diversos modos de vida e de pensamento, não poderia oferecer outra coisa que não fosse a Jesus Cristo e Cristo crucificado. Porque Ele é para os eleitos poder e sabedoria de Deus.
         «Deus é que nos marcou com o Seu selo e deu aos nossos corações o penhor do Espírito». Dizia S. Paulo na segunda leitura. Estamos marcados pelo espírito da verdade que nos leva a descobrir continuamente a verdade acerca do ser humano e a verdade de Deus, revelada em Jesus Cristo. O homem na sua inteligência e no seu coração não fica realizado por mera troca de opinião. Ele sente a necessidade de se lançar na aventura da conquista que o torna o ser mais sublime de toda a criação, o incansável buscador da verdade que o leva a encontrar-se com Deus que, por Sua vez, vem ao seu encontro.
         É precisamente neste processo que a palavra proclamada na primeira leitura e o lema do santuário para este ano nos iluminam.
         O profeta Ezequiel interpreta a vontade de Deus em reunir o seu povo, em purificá-lo, em dar-lhe um coração novo e infundir nele o Seu espírito. Segundo as suas palavras, é Deus que toma a iniciativa de procurar o ser humano e, pelo seu grande amor, projecta sobre ele um futuro de perfeição.
Estará o homem aberto a esta acção de Deus? Esta foi a pergunta que percorreu a história da salvação. Com esta interrogação se deparou Jesus Cristo, confrontando a sua vida, Ele que é «o caminho a verdade e a vida», com a obstinação dos seus contemporâneos em se abrirem à acção de Deus, aceitando a sua identificação com o Pai. Este é o drama do nosso tempo, o afastamento do homem da verdade presente em pessoa divina, em Jesus Cristo, que interpela mas, ao mesmo tempo, oferece a redenção e, pela acção do Espírito Santo, fá-lo experienciar a plenitude da verdade, na comunhão com o Pai.
         O lema deste santuário, «os puros de coração verão a Deus», coloca-nos perante a exigência que nos é feita pelo profeta «lavai-vos, purificai-vos, afastai de mim a malícia das vossas acções»  (Is. 1,16), só deste modo podemos percorrer os caminhos da verdade que na experiência cristã se interliga com a experiência do amor. Em S. João, não só o reconhecimento de Deus, a verdade plena, se alcançará pela prática do amor(cfr. 1Jo. 4, 7ss), como no significado da Ceia Pascal, Jesus Cristo despoja-se a si mesmo, e tomando a condição de servo, coloca-se em atitude de quem quer lavar os seus apóstolos, convidando-os à humildade para reconhecerem que necessitam que Ele mesmo os purifique, e exorta-os a que façam o mesmo aos seus irmãos (cfr.Jo.13, 4-15).
         Estamos a viver um contexto civilizacional, no qual, a fé cristã está constantemente a ser confrontada, já não tanto, com modelos racionais, mas sobretudo com modelos pagãos. É perante a idolatria do ser humano, da sua sensualidade, do poder, da ganância e dos bens materiais, que S. Paulo nos adverte, como fez à comunidade de Corinto, que após sublinhar que todos os idólatras não possuirão o reino de Deus, volta-se para os cristãos para os advertir, dizendo: «Mas vós fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus» (1Cor. 6, 11). Depois de gritar aos ouvidos dos seus contemporâneos: «Fugi da imoralidade» (1Cor. 6, 18), Paulo exorta os baptizados da comunidade de Corinto com as seguintes palavras: «Não sabeis, porventura, que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, que recebestes de Deus e que não vos pertenceis a vós mesmos? É que fostes comprados por um grande preço. Glorificai a Deus no vosso corpo»(1Cor. 6, 19-20).
         Repito, envolvidos num clima religioso neo-pagão, a necessitar de escutar a palavra do Evangelho, como se fosse pela primeira vez, para re-introduzir o ser humano no verdadeiro sentido da sua vida, importa alertar os cristãos, tantas vezes seduzidos pelo ambiente que os rodeia, que, para serem autenticamente missionários nos meios onde vivem, devem começar por apreciar em si mesmos o valor da redenção operada por Jesus Cristo.
         Um dos graves problemas do nosso tempo, fruto da sedução neo-pagã, tem a ver com a utilização dos símbolos cristãos mas sem a sua verdadeira densidade simbólica, ou seja, sem passar pela verdadeira compreensão do conteúdo que os sinais contêm. Mas igualmente grave é o corte existencial entre a prática dos ritos da fé cristã e a consequente vida moral. Também neste campo dos comportamentos morais e éticos, devemos escutar a S. Paulo que sentiu a ameaça deste mesmo perigo. Diz ele: «Vós irmãos, fostes chamados à liberdade, não tomeis porém a liberdade, como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade(...) (Gal. 5,13-14). E, após enumerar as obras vinda da escravidão da carne, apresenta os frutos do espírito do seguinte modo: «caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança» (Gal. 5, 22-23). Conclui afirmando que os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e apetites, porque se vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o Espírito (cfr. Gal. 5, 24-25).
         João Paulo II alerta para esta mesma realidade com a seguintes palavras: «A radical separação entre liberdade e verdade é consequência, manifestação e realização de uma outra dicotomia mais grave e perniciosa, a que separa a fé da moral. Esta separação constitui uma das mais sérias preocupações pastorais da Igreja no actual processo de secularismo, onde tantos, demasiados homens pensam e vivem “como se Deus não existisse”» (VS, 88).  Reconhece o Papa que nos encontramos diante de uma mentalidade que atinge, frequentemente de modo profundo, vasto e capilar, as atitudes e os comportamentos dos cristãos, cuja fé se debilita e perde a própria originalidade de novo critério interpretativo e operativo para a existência pessoal, familiar e social. Insiste, dizendo que os critérios de juízo e de escolha, assumidos por muitos crentes, apresentam-se, frequente-mente, no contexto de uma cultura amplamente descristianizada, como alheios ou mesmo contrapostos aos do Evangelho (cfr. VS, 88). Duas urgências à pastoral da Igreja, neste domínio: que os cristãos redescubram a novidade da sua fé e a sua força de discernimento; recuperem e voltem a propor o verdadeiro rosto da fé cristã, que não é simplesmente um conjunto de proposições a serem acolhidas e ratificadas com a mente. Trata-se, sim, de um conhecimento existencial de Cristo, memória viva dos seus mandamentos, verdade a ser vivida (cfr. VS, 88).
         O ser humano, convidado a purificar o seu olhar, coloca-o no horizonte de viver em plenitude a liberdade na responsabilidade. Mas depara-se com um drama, que João Paulo II descreve do seguinte modo: «A reflexão racional e a experiência quotidiana demonstram a debilidade que caracteriza a liberdade do homem. É liberdade real mas finita (...) É liberdade de uma criatura, ou seja, a liberdade dada, que deve ser acolhida com um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade. É parte constitutiva daquela imagem de criatura que fundamenta a dignidade da pessoa: nela ressoa a vocação original com que o Criador chama o homem ao verdadeiro bem, e, mais ainda, com a revelação de Cristo, chama-o a estabelecer amizade com Ele, participando na mesma vida divina. É inalienável propriedade pessoal e, ao mesmo tempo, abertura universal a todo o vivente, com a saída de si rumo ao conhecimento e ao amor do outro. Portanto, a liberdade radica na verdade do homem e destina-se à comunhão» (VS, 86). Considera ainda o saudoso Papa: «A razão e a experiência atestam, não só a debilidade da liberdade humana, mas também o seu drama. O homem descobre que a sua liberdade está misteriosamente inclinada a trair esta abertura à Verdade e ao Bem, e que, com bastante frequência, de facto, ele prefere escolher bens finitos, limitados e efémeros» (VS, 86). Para concluir que a liberdade necessita de ser libertada, porque detrás dos erros e das opções negativas, o homem detecta a origem de uma revolta radical, que o leva a rejeitar a Verdade e o Bem para se arvorar em princípio absoluto de si próprio. Só Cristo é libertador. Como refere S. Paulo, «Ele nos libertou, para que permaneçamos livres» (Gal. 5,1).
Só a Verdade autêntica, Jesus Cristo, caminho, verdade e vida, é condição para a autêntica liberdade. Como sublinha S. João «Conhecereis a Verdade e a verdade vos libertará» (Jo. 8,32).
Não apaguemos ou descuidemos a marca do Espírito Santo que nos assinalou para a Vida eterna.
Imploro da Santíssima Virgem, Nossa Senhora de Fátima, dos Beatos Francisco e Jacinta, que nos alcancem de Jesus Cristo as bênçãos para vivermos a alegria da vida segundo o Espírito. Amen
 
+ João Lavrador
Bispo Auxiliar do Porto
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