09 de novembro, 2024

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Fátima na História, pela história de um muro

Celebra-se hoje 35 anos da queda do Muro de Berlim, um momento decisivo do mundo, que se entrelaça com a mensagem de Fátima.

 

Há 35 anos, na noite de 9 de novembro de 1989, o mundo ficava em suspenso perante um dos momentos mais poderosos de reconciliação e esperança da história recente. Em Berlim, um anúncio inesperado desencadeava a queda de um muro que, por quase três décadas, dividira uma cidade e um país, tornando-se símbolo de uma profunda cisão do mundo em dois blocos.

Em Fátima, um fragmento desse muro está monumentalizado, perpetuando uma conexão que muitos veem como um eco profético e um sinal de que barreiras, aparentemente intransponíveis, podem ruir quando a fé e o desejo de liberdade convergem.

Mas, afinal, que relação existe entre as aparições de Nossa Senhora a três crianças, no topo de uma serra portuguesa em 1917, e as mudanças geopolíticas desencadeadas por uma noite de tréguas e de fraternidade, quase 70 anos depois?

 

Uma profecia que alerta

Na manhã do dia 13 de julho de 1917, Lúcia saiu de casa por volta das 11h00 em direção à morada dos primos, Francisco e Jacinta, para juntos seguirem até ao lugar onde, no dia 13 dos últimos dois meses, Nossa Senhora lhes aparecia. Fizeram o percurso a correr até à Cova da Iria, onde chegaram ainda a tempo de recitar o Terço com a multidão de pessoas que ali se juntara já desde o dia anterior. Terminada a oração, Nossa Senhora aparece às três crianças, com uma mensagem especial.

“Foi este o dia em que a Santíssima Virgem se dignou revelar-nos o segredo”, conta Lúcia, nas suas Memórias, ao referir-se a um trecho específico da mensagem que Nossa Senhora pedira aos pequenos videntes que não revelassem. A primeira e segunda parte viriam a ser tornadas públicas em 1942, depois de Lúcia as ter transmitido por carta ao então bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, a pedido do próprio.

O conteúdo destas primeiras partes do segredo descreve uma visão do inferno e um “prenúncio dos danos imensos que a Rússia, com a sua defeção da fé cristã e adesão ao totalitarismo comunista, haveria de causar à humanidade”, lê-se num comentário ao Segredo, de junho de 2000, assinado pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI.

Ao prever a ameaça do comunismo, que se concretizara num regime político através da Revolução Russa de outubro do mesmo ano das Aparições, o conteúdo sigiloso apontava também a solução: a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria e a comunhão reparadora nos primeiros sábados.

“Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará”, escreve nas suas Memórias a vidente mais velha, numa redação que culminava num tom de esperança.

“O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz”, escreveu Lúcia, ao recorda-se das palavras que Nossa Senhora lhes transmitira na aparição.

Quando as recebeu da “Senhora mais brilhante que o sol”, a 13 de julho de 1917, e no momento em que as transmitiu ao seu bispo, um quarto de século depois, nem ela, nem o bispo de Leiria conseguiriam interpretar o alcance da mensagem. Seria preciso um quarto de século para desvendar plenamente o seu significado.

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Jacinta, Lúcia e Francisco, numa fotografia tirada por Mário Godinho, junto à igreja paroquial de Fátima, no dia da aparição de 13 de julho de 1917.

 

Três consagrações que fracassam 

Tornado público o pedido expresso de Nossa Senhora para a consagração da Rússia ao seu Imaculado Coração, por várias ocasiões foi tentada a sua concretização pelo Sucessor de Pedro, mas apenas uma delas viria a ser efetiva e reconhecida por Lúcia de Jesus.

A primeira consagração foi feita sem a menção direta à Rússia, ainda durante a II Guerra Mundial, a 31 de outubro de 1942, por via de uma radiomensagem do Papa Pio XII ao povo português, na comemoração do 25.º aniversário das aparições de Fátima.

 

  • “Ao vosso Coração Imaculado, nesta hora trágica da história humana, confiamos, entregamos, consagramos não só a Santa Igreja, corpo místico de vosso Jesus, que pena e sangra em tantas partes e por tantos modos atribulada, mas também todo o mundo, dilacerado por exiciais discórdias, abrasado em incêndios de ódio, vítima de suas próprias iniquidades.”

    Papa Pio XII | Radiomensagem aos fiéis portugueses por ocasião da consagração da Igreja e do género humano ao Coração Imaculado de Maria, a 31 de outubro de 1942

 

Uma década depois, a 7 de julho de 1952, num contexto de tensão crescente de uma “Guerra Fria” alimentada pela expansão do comunismo, especialmente sob o regime soviético, o mesmo Papa repetia a consagração de uma forma mais direta, através da carta apostólica Sacro vergente anno.

Embora significativa, por mencionar explicitamente a Rússia, esta segunda tentativa de consagração não foi considerada plenamente válida por não incluir a participação dos bispos do mundo inteiro, tal como pedira Nossa Senhora.

 

  • “Assim como há alguns anos consagrámos o mundo inteiro ao Coração Imaculado da Virgem Mãe de Deus, agora, de modo especialíssimo, consagramos todos os povos da Rússia ao mesmo Coração Imaculado.”

    Papa Pio XII | Carta apostólica Sacro vergente anno
    7 de julho de 1952

 

A 21 de novembro de 1964, no discurso da clausura da III sessão do Concílio Vaticano II, também o Papa Paulo VI viria a fazer uma consagração da Igreja e do mundo ao Imaculado Coração de Maria, mas ainda sem a referência explícita à Rússia

Um atentado à vida do Papa João Paulo II, a 13 de maio de 1981, precisamente no aniversário das aparições de Fátima, levaria este Sumo Pontífice a relacionar aquele acontecimento com a mensagem de Fátima e a querer cumprir o ato de consagração solicitado pela Virgem Maria, em Fátima.

Para agradecer a “mão materna” que o protegera da morte, o Papa polaco vem a Fátima em maio de 1982. Durante a visita, encontra-se com a irmã Lúcia de Jesus, que reforça junto do Santo Padre a importância de o ato de consagração acontecer em união com todos os bispos do mundo.

João Paulo II regressa a Roma com a intenção de preparar da melhor forma um derradeiro ato de consagração e, em 1983, envia ao episcopado mundial um convite para que renovassem com ele a consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, no ano seguinte.

 

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Esta consagração viria a ser realizada a 25 de março de 1984, na Praça de São Pedro, durante o Jubileu para as Famílias, e diante da imagem de Nossa Senhora que é venerada na Capelinha das Aparições, num ato simultâneo de colegialidade com todos os bispos, característica que fez desta a consagração mais significativa e a única a ser reconhecida pela última vidente das aparições de Fátima [foto acima].

 

  • “Estamos aqui unidos com todos os Pastores da Igreja por um vínculo particular, pelo qual constituímos um corpo e um colégio, do mesmo modo que os Apóstolos, por vontade de Cristo, constituíam um corpo e um colégio com Pedro.”

    João Paulo II | Ato de entrega a Nossa Senhora de Fátima no Jubileu da Família
    25 de março de 1984

 

João Paulo II viria a renovar esta consagração a 13 de maio de 1991, já no Santuário de Fátima. Dois anos antes, uma profunda mudança estaria para ocorrer no coração do velho continente.

 

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Pormenor do Muro, no território oriental da cidade de Berlim, em 1984, data da última consagração cumprida por João Paulo II | FOTO © George Garrigues

 

Um muro que cai

Um ano após a derradeira consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, em março de 1985, tomava posse como Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético um reformista. Mikhail Gorbachev procurou, desde logo, lançar mudanças profundas no regime da União Soviética, assentes numa reestruturação e numa abertura progressiva, que estabeleceriam uma conjuntura propícia às mudanças que viriam a acontecer quatro anos depois, numa Alemanha dividida.

Neste contexto de mudança, seria um erro na comunicação de uma nova medida de mobilidade para o Ocidente, por parte um porta-voz do governo da República Democrática Alemã, aliada ao bloco soviético, a despoletar uma reação em cadeia que mudaria para sempre o destino de Berlim e do mundo.

O anúncio confuso desencadeou de imediato uma movimentação em massa da população daquela cidade para os limites de um muro que, desde 1961, era a metáfora de um mundo em tensão, marcado por um conflito latente que separava o Leste do Oeste, o comunismo da democracia.

No prazo de poucas horas e sem resistência, as portas fechadas de um muro foram progressivamente abertas, num acontecimento que ressoou com os alerta e o pedido que Nossa Senhora de Fátima deixara a Lúcia durante a aparição de 13 de julho de 1917. No mês seguinte ao da queda do Muro, o então reitor do Santuário sintetiza no editorial da Voz da Fátima a leitura de quem olhava para este acontecimento a partir de Fátima.

"Em 25 de Março de 1984, o Papa João Paulo II, que viera de um país marxista, tendo convidado os bispos do mundo inteiro a reunirem-se a ele nesse mesmo dia, consagrou uma vez mais a Igreja e o mundo, com uma menção velada pela Rússia, ao Imaculado Coração de Maria. No ano seguinte, Gorbachev era eleito Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, e dava início à Perestroika de que nasceriam as brechas do Muro de Berlim. Que força está então por trás dessas brechas? Afirmam-nos a acreditar que é a força de Deus, propiciada no amor desse Coração Imaculado da Mulher do Génesis, a quem tantos, de lá e de cá, se consagraram, em união com o Santo Padre e os bispos do mundo inteiro”, escrevia o monsenhor Luciano Guerra.

 

2024-11-09muroberlim7.jpgBerlinenses reencontram-se, nos dias seguintes à queda do Muro. | FOTO: © Gavin Stewart

 

Uma Mensagem que persiste

A cronologia dos eventos que se seguiram à consagração feita por João Paulo II, em 1984, e que desencadearam mudanças inesperadas para um mundo mais unificado e fraterno, abrem portas a uma leitura onde a fé e história se entrelaçam.

O mesmo muro que separava uma cidade e um mundo em guerra latente e que, há 35 anos, começava a cair, concedendo ao mundo “algum tempo de paz”, está hoje eternizado na Cova da Iria, num monumento que perpetua a memória de um acontecimento que liga, de forma indelével, a mensagem de Fátima à história do mundo.

O monumento é composto por um fragmento autêntico do Muro de Berlim, doado ao Santuário por iniciativa de um emigrante português na Alemanha, em 1994. Com cerca de 2,6 metros de altura e com 2,5 toneladas, a peça é exibida arquitetonicamente enquadrada num monumento, como símbolo da superação das divisões que marcaram o século XX, evocando a mensagem de paz e reconciliação de Nossa Senhora de Fátima.

 

2024-11-09muroberlim5.jpgFoto da inauguração do monumento do Muro de Berlim, no dia 13 de agosto de 1994.

 

Numa lápide, junto ao monumento, leem-se as palavras que João Paulo II proferiu na noite de 12 de maio de 1991, na Capelinha das Aparições: “Obrigado, celeste pastora, por terdes guiado com carinho maternal os povos para a liberdade!”. No dia seguinte, no mesmo lugar, o Sumo Pontífice confiava à “Mãe das Nações” as “mudanças inesperadas, que restituíram a confiança a povos, longamente oprimidos e humilhados”.

Nesta visita, o Papa que concretizara a consagração pedida pela Virgem Maria foi presenteado com um terço feito com pequenos fragmentos do Muro de Berlim, uma peça que simbolicamente acabaria por ficar no Santuário, e que hoje integra a exposição permanente do Museu [foto abaixo].

 

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Num contexto de divisões profundas e aparentemente intransponíveis, o colapso do Muro de Berlim fez erguer uma nova esperança que redesenhou o mundo. A queda da “Cortina de Ferro” destapou a memória de uma antiga promessa deixada em Fátima, que, além da previsão de um tempo conturbado, apresentava a esperança do triunfo do Imaculado Coração de Maria, através da oração e da conversão.

Tal como antes da queda do Muro de Berlim, também hoje o mundo vive tempos em que se erguem novas barreiras e se geram divisões por meio de uma “guerra mundial em pedaços”, como se a história se repetisse.

Persistem no tempo os apelos de paz e conversão da mensagem de Fátima que, um século depois, continuam a iluminar o mundo, especialmente nas horas de maior tribulação, guiando a humanidade pelo caminho da esperança e da reconciliação, rumo a Deus.

 

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