11 de junho, 2023

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“Fátima é um sinal do Céu através da presença da Mãe do Senhor no nosso caminho” e “pode dar-nos essa passagem de uma globalização apenas económica para uma globalização da solidariedade e do cuidado”- cardeal Pietro Parolin

O Secretário de Estado da Santa Sé regressou a Fátima, num momento de mudança epocal, depois de uma pandemia, de uma crise económico-social e no contexto de uma guerra, no coração da Europa.

 

Profundo conhecedor dos trajetos da política mundial e alto defensor da paz entre os povos, a carreira diplomática ao Serviço da Santa Sé fê-lo protagonista de diferentes cenários nos quais teve intervenção como construtor de pontes entre lugares distantes como os Estados Unidos da América ou Cuba. Hoje, os olhos da diplomacia católica viram-se também para a Ásia, onde o número de católicos não para de crescer. 

Nesta entrevista, olhamos, sobretudo, os desafios da Igreja neste mundo em reconstrução.

 

Como poderemos restaurar a esperança neste ambiente tão conturbado, e de tanta incerteza, debaixo do qual vivemos?

É verdade, vivemos num tempo particularmente difícil que é sentido pela maioria das pessoas, especialmente esta guerra, que veio somar-se às crises anteriores; a pandemia, que temos a tentação de esquecer, de deixar no passado, mas que foi uma experiência verdadeiramente dramática pela humanidade. Creio que, enquanto cristãos, porque penso que a pergunta é dirigida a nós, cristãos, devemos fazer duas coisas: antes de tudo, oferecer esperança. A esperança é uma palavra verdadeiramente fundamental nesta nossa época, perante as muitas desilusões e as profundas perdas que estamos a viver. Nós somos homens de esperança. Porquê? Porque sabemos que a nossa história, que a história do mundo, apesar de todas as contradições que vive diariamente, está nas mãos do Senhor. Sabemos que Cristo ressuscitou e que desde que Cristo ressuscitou, a história não mudou do dia para a noite, como se diz, mas foi introduzida nas questões humanas uma semente de bem a qual explodirá no final dos tempos, graças a força da ressurreição do Senhor. Creio, então, que oferecer esperança é a resposta e aqui refiro-me a carta do Santo Padre “fratelli tutti”, construir fraternidade para enfrentar juntos os grandes desafios do nosso tempo, transformar, portanto, o nosso mundo numa família onde nunca prevalece a indiferença. O Papa fala muitas vezes desta cultura da indiferença, que carateriza a nossa época, mas onde cuidamos uns dos outros.

Diante da intransigência de tantos, conseguiremos trabalhar essa esperança no sentido da amizade social e da fraternidade universal?

Essa é uma pergunta à qual não posso dar uma resposta exata. Porque em todas as questões vemos que o que é fundamental é aquilo a que chamamos political will, ou seja, a vontade de fazer as coisas. Creio que as ideias são bastante claras, no sentido em que sabemos onde devemos ir para construir uma sociedade mais justa, para construir essa amistas, essa amizade social a que se referia. Não são certamente os meios, não são certamente as escolhas ou decisões de hoje; hoje estamos a ir na direção oposta. Impressiona-me muito que, para além da destruição do tecido das relações internacionais, que a guerra em particular trouxe, haja uma absoluta falta de confiança entre os povos e as nações. A desconfiança cresceu, a suspeita cresceu, portanto, é preciso ter vontade e, sobretudo, não se deixar condicionar, como dizer, excessivamente pelos seus interesses particulares. É preciso ter uma visão mais ampla, uma visão da humanidade e do mundo como uma família, onde o bem depende do bem dos outros e o bem dos outros, de todos, condiciona também o bem de um. A perspetiva é clara, a direção é clara, é necessário precisamente esta vontade para a pôr em prática. O Papa recorda-nos estes princípios para que os que têm o governo e a administração da coisa pública saibam traduzi-los na realidade do seu país e na realidade internacional.

Fátima é um poderosíssimo convite à convivência dos homens, isto é, à construção da Paz...

Fátima é um sinal do céu através a presença da Mãe do Senhor no nosso caminho, mas creio que Fátima pode ajudar-nos através daquilo que tem sido as mensagens de Nossa Senhora, mensagens que não são devocionais, mas que refletem profundamente nas questões humanas, se levadas a sério, nomeadamente a oração. Sabemos que a oração é o instrumento principal para a construção da paz, porque a paz é um dom de Deus, que se pede com a oração, mas também com a penitência. Mas uma penitência, diria eu, de desapego das paixões. Recentemente li sobre um padre da Igreja que dizia que todas as guerras e todos os conflitos nascem da vanglória, nascem do orgulho, nascem do desejo de possuir. Portanto, devemos lutar contra esses inimigos, mas esta é uma verdade válida para todos, mesmo para aqueles que fazem grandes guerras; nasce desta raiz do mal que está dentro de cada um de nós, da qual devemos ter consciência absoluta e que temos de vencer através da penitência. Esta é a mensagem de Fátima, que se traduz numa palavra: 'conversão', que é a primeira palavra que Jesus disse quando começou a pregar: 'o reino de Deus está próximo, convertei-vos e acreditai'. Eu creio que Fátima tem esta mensagem para dar, Fátima tem este caminho para mostrar e está a mostrá-lo ao mundo de hoje. 

Esta ideia de Fátima como um espaço de fraternidade e de experiência de fraternidade universal é também uma ideia muito sedutora. Seria interessante, por exemplo, escolher este lugar da Cova da Iria para a celebração de um dia da fraternidade universal?

Sim, sim, pode ser. Quer pela mensagem que Nossa Senhora deixou aos três pastorinhos e que hoje é reapresentada nas várias celebrações, quer pelo facto de aqui convergirem peregrinos de todo o mundo. Aqui se realiza já uma experiência de fraternidade. Talvez pudéssemos também pensar em propor Fátima como o lugar para celebrar o dia da fraternidade. Mas creio que é importante, porque a fé nunca deve ser separada da vida, é importante que cada um destes peregrinos, para além de fazer naturalmente uma experiência pessoal de encontro com o Senhor e com Nossa Senhora, possa, quando regressar às suas casas, aos seus países, às suas igrejas, ser mensageiro e testemunha desta mensagem de Fátima.

O que é que Fátima diz ou pode dizer-nos sobre este fenómeno de globalização, esta ideia de estarmos todos juntos, mas continuando a não conseguirmos olhar-nos como irmãos?

O fenómeno da globalização é um fenómeno complexo, que tem os seus aspetos positivos. Não queremos certamente demonizá-lo, mas tem também aspetos muito problemáticos, muito difíceis e que tem também consequências verdadeiramente negativas para muitos povos e para muitas nações. Aqui, retomo a primeira ideia: Fátima pode dizer-nos que esta globalização, que é sobretudo uma globalização económica e de interesses económicos, deve ser primeiramente uma globalização da solidariedade, essa é a questão. Isto é, como dizia antes, é fundamental a ideia de que o Papa se faz continuamente mensageiro e intérprete, ou seja, temos de aprender a cuidar dos outros. Nossa Senhora deu-nos um exemplo, porque Nossa Senhora é mãe antes de mais, e a característica de todas as mães é cuidar, é a essência, a substância de toda a maternidade, não só cuidar dos seus próprios filhos, mas de um modo geral de cuidar dos seres humanos. Nossa Senhora veio cuidar de nós, quando estávamos numa situação difícil, quando eles estavam, porque nós não estávamos lá. Ela diz-nos isso, Fátima pode realmente dar-nos essa passagem de uma globalização apenas económica para uma globalização da solidariedade e do cuidado.

A falta de consideração pelo outro assenta no egoísmo que colocado ao serviço de um povo gera um mal maior, como aquele que estamos a viver no coração da Europa ou em tantas manifestações de populismo que despertam o ódio...

Creio que o populismo nasce quando não são dadas respostas concretas aos problemas das pessoas; quando as pessoas não veem que as suas necessidades básicas satisfeitas e por isso confiam nos líderes, não é? E, claro, há quem se aproveite desta situação, porque o populismo não é apenas, na minha opinião, uma questão de líderes. Há certamente líderes que, precisamente pelos próprios interesses, adotam esta forma de fazer as coisas, mas é também, como dizer, uma atmosfera. Assistimos tantas vezes a crise da democracia, mas a crise da democracia nasce no povo, nas pessoas que já não têm confiança. O fenómeno do abstencionismo nas eleições é um sinal muito claro de que as pessoas já não confiam nos políticos e, por isso, confiam nessas pessoas que propõem ou que iludem em dar respostas simples, face a um mundo complexo, dar respostas imediatas, perante um mundo que, pelo contrário, exige um trabalho longo e paciente dos fenómenos.

Como diplomata e chefe da diplomacia de um Estado,  sente que a democracia está ameaçada?

Creio que sim, precisamente devido a este clima que estamos a viver... Mas, mesmo aqui, eu diria: que democracia? Porque a democracia não é apenas o simples exercício do voto, não é apenas um método através do qual as pessoas se exprimem, mas é, creio eu, acima de tudo um sistema de valores, de valores a aderir. E os valores regulam também as relações políticas, os valores regulam as decisões que são tomadas, os valores regulam a convivência. Quando já não existe este sentido de valores, mesmo na democracia, esta torna-se um puro exercício que, em última análise, já não é valorizado. Por isso, é muito importante saber também que tipo de democracia queremos. Uma democracia que se construa sobre valores e que signifique o respeito de todos, na individualidade de cada um, nas suas particularidades, nas suas capacidades.

Eminência, propunha-lhe que voltássemos à mensagem de Fátima e concretamente à terceira parte do Segredo que falava do martírio da Igreja... Hoje diante destas situações todas que todos nós bem conhecemos, desde os escândalos financeiros à questão dos abusos, pergunto-lhe, ainda vamos a tempo de recuperar a confiança das pessoas e consequentemente a relevância da Igreja como um projeto salvífico?

Sim, a perseguição, neste caso, vem do interior da Igreja, não vem do exterior. Infelizmente, demos lugar a muitas críticas e condenações precisamente por causa de fenómenos que surgiram na Igreja, fenómenos que, por outro lado, são típicos de qualquer realidade humana, e a Igreja é também uma realidade humana. Dizia-o o Concílio, dizia-o em primeiro lugar Jesus, com a parábola do joio, quando disse que onde há trigo bom há também joio mau. É assim que é feita a Igreja. Mas eu digo sempre: há que admirar o facto de o Senhor se ter entregue nas nossas mãos, não é verdade? Ele quis a Igreja como seu corpo, como sua continuação no tempo e no espaço, mesmo sabendo o quanto somos fracos e pecadores. É uma coisa bonita de se ter em mente, contra todos os escândalos fáceis. Mas isto exige de nós uma atitude reformadora. A Igreja semper reformanda, uma Igreja que deve interrogar-se continuamente sobre o tipo de testemunho que está a dar às pessoas, porque hoje o Evangelho passa pelo nosso testemunho. É um testemunho transparente, um testemunho coerente e um testemunho do Evangelho ou é outra coisa? Aí somos todos chamados a interrogar-nos, a questionar-nos, a discernir qual é o melhor caminho. Mas o melhor caminho continua a ser o do testemunho pessoal e comunitário. O importante é que consigamos também construir a comunidade, para que não seja apenas um testemunho individual, mas também o de uma comunidade a dar testemunho do Evangelho no mundo.

O sínodo que vivemos, mais do que um processo, uma atitude é uma segunda oportunidade para nos reposicionarmos? 

Creio que é um processo providencial no sentido de responsabilizar todos os cristãos na sua missão missionária, que é afinal também a primeira mensagem lançada pelo Papa Francisco com a exortação Evangelii Gaudium, a Igreja em saída, a Igreja missionária, os discípulos missionários. Somos discípulos do Senhor para proclamar o seu Evangelho. Por isso, creio que este caminho sinodal, que está a envolver cada vez mais as Igrejas e que conta com uma grande participação dos leigos, significa sentirmo-nos todos corresponsáveis no anúncio do Evangelho, em levar o anúncio do Evangelho ao nosso mundo, à nossa realidade, para que o mundo possa continuar a viver e a ter esperança.

Às vezes sentimos que a instituição não permite que avancemos...

Sim, evidentemente... Falei com o Secretário-Geral do Sínodo dos Bispos e ele disse-me que a terceira parte, a missão, será sobretudo uma reflexão sobre a forma de traduzir, a nível das estruturas, estes princípios de comunhão e de participação. Portanto, certamente terá de haver também um esforço para garantir que estes princípios possam depois tornar-se realidade na vida da Igreja, mesmo que as estruturas nunca traduzam completamente e mesmo que eu pense que não devemos criar falsas expectativas, porque é verdade que a Igreja é comunhão, mas também é verdade que é uma comunhão em que cada um tem a sua própria responsabilidade. Quer dizer, somos todos iguais em dignidade e essa dignidade deriva do batismo, portanto não há distinção, mas na função e no serviço somos diferentes e essas diferentes responsabilidades devem ser reconhecidas. Por vezes, esperam-se coisas que a Igreja não pode dar e estou a referir-me também a certos movimentos que existem internamente..

Refere-se a temas fraturantes...

Sim, sim.

Mas devemos ter em equação estas questões...

Claro, claro. Deveria haver também, como ponto de chegada, esta adaptação das estruturas aos princípios que sempre estiveram presentes na Igreja, ou seja, de comunhão, de participação, de coresponsabilidade.

O Senhor é a segunda figura do Estado do Vaticano, portanto a segunda figura da hierarquia da Igreja católica, ainda assim pedia-lhe que pudesse fazer um esforço para fazer um balanço deste pontificado, numa altura em que também dentro da Igreja surgem sinais de alguma polarização.

É difícil fazer um balanço, porque estas sínteses são bastante problemáticas, mas penso que, como já referimos, o Papa Francisco deu-nos indicações claras no seu pontificado, no sentido de uma redescoberta da dimensão missionária da Igreja; isto é, nós não existimos para nós próprios.

Existem muitos problemas, e que me preocupam muito, e um dos grandes problemas da Igreja de hoje é a sua unidade. A unidade da Igreja, que é um traço característico- a Igreja é una, Santa, Católica e Apostólica, embora isso não signifique que não haja diferenças, que não haja também aspetos de distinção no seio da Igreja- , mas eu diria que tantas polarizações surgem porque olhamos demasiado para dentro de nós, para dentro da nossa Igreja, para dentro do nosso grupo, e ainda não compreendemos que a nossa missão é anunciar o Evangelho, a nossa missão é levar a boa nova aos homens do nosso tempo, a uma cultura que mudou completamente, a um mundo que é mais complexo, num mundo mais difícil de interpelar, num mundo que sente cada vez menos a necessidade de Deus porque pensa que se basta a si próprio. Devemos, todos nós, nos sentir anunciadores do Evangelho, com as palavras e sobretudo com a vida, e depois prestar muita atenção aos pobres e aos vulneráveis, pois é também através deste exercício da caridade de Cristo que podemos anunciar o Evangelho ao mundo de hoje.

 

 

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