13 de fevereiro, 2020

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Fátima é um convite à paz espiritual, à paz de Deus, à paz total, afirma Filipe Almeida

 

Filipe Almeida é diretor de serviço de Humanização do Centro Hospitalar Universitário de São João e pertence ao grupo de conselheiros do Papa Francisco, na Academia Pontifícia para a Vida, um organismo criado em 1994 e que tem a função de aconselhar o Santo Padre no que respeita aos valores da vida e da dignidade humanas perante os desafios e desenvolvimentos da ciência e da tecnologia.

A busca não é a de uma análise confessional, mas a fé entendida como a possibilidade de uma experiência espiritual única com o transcendente que ajude a compreender a nossa humanidade e, ao mesmo tempo, a sarar feridas profundas que resultam do acompanhamento de uma criança no seu tempo de morrer ou da sua própria morte; é talvez o ponto de partida para a jornada que Fátima vai acolher, de 7 a 10 de maio, e que pretende colocar na agenda da discussão pública o tema “As crianças, a morte e o luto”. O Santuário, que desde a sua origem foi um lugar de convergência de sofrimentos e de refúgio de sofredores, desde logo com os protagonistas do acontecimento de Fátima, Francisco e Jacinta Marto, não pode deixar de se abrir a esta discussão.

“Fátima é uma oportunidade especial para o convite ao despojamento, um convite para a aproximação que eu tenho de fazer ao outro para o despertar; é um convite para experimentar a compaixão; um convite para perceber o poder da oração na descoberta do sentido da vida, e este é um convite único”, explica Filipe Almeida que integra o grupo que está a desenhar, desde a primeira hora, a coluna vertebral desta Jornada.

“Falo com tantos pais de crianças que morreram e para mim é claro que, para além da discussão religiosa, a expressão de um convite para uma experiência de espiritualidade, que sendo muito individual precisa desta partilha, que nos remete para a compreensão de uma humanidade que podemos partilhar, Fátima é a expressão desse convite”, acrescenta ao destacar que Fátima “é a possibilidade de fazermos a experiência da paz; uma paz interior muito bem desenhada na mensagem de Fátima e nesta vivência espacial de estarmos em Fátima”.

“A paz espiritual, a paz de Deus, a paz total para a qual Fátima nos convida, é uma questão que os pais me colocam: como podem sobreviver a uma questão humana através do transcendente”, revela o médico oncologista pediátrico.

“O que me é inspirador nesta Mensagem, nesta proposta que nos desconforta muitas vezes, é a consciência da necessidade que temos de estarmos atentos à humildade e à confiança. Este é o grande desafio da santidade” que as duas crianças de Fátima revelaram; e quando a “humildade e a confiança” atravessam “o percurso profissional tão marcado pela dureza do sofrimento, esta confiança legada pelos Pastorinhos é algo muito identitário e muito próprio”.

Sobre a oportunidade do tema – As crianças, a morte e o luto – afirma: “é necessário colocar esta questão na ordem do dia. De facto, as crianças morrem e temos de nos tornar cuidadores, ajudando as crianças no seu tempo de morrer”. “Não há cuidados paliativos em Pediatria”, reconhece, e por isso é tempo de a sociedade, no seu conjunto, estar atenta e apostada “em construir modelos que sejam capazes de responder aos desafios que uma rede traz. É precisa uma resposta social e espiritual nos vários níveis de intervenção”, sem “padronizações excessivas” ou “respostas decalcadas”.

“A cultura de hoje apela muito à massa, ao copy/paste, à repetição porque poupa, facilita, mas isto pode ser ofensivo. Hoje olhamos para um hospital numa lógica empresarial. Olhar para as coisas numa perspetiva económica com ética é absolutamente indispensável porque sabemos que os recursos não são ilimitados e a sua boa gestão é uma questão ética. Mas, este salto na abordagem pode ter reduzido a atenção para as questões da humanidade”, diz.

“Há uma outra produtividade que tem de ser colocada em cima da mesa e de cada cama do Hospital que é a produtividade dos afetos e que é uma forma de dizer a capacidade de responder em abundância às necessidades específicas de cada caso, de cada doente”.

“Há uns anos o centro do hospital era o doente; hoje é o cliente. Não tenho nada contra os clientes, mas pode ser redutor. O cliente é importante, mas é alguém com quem lido de igual para igual, é alguém que num patamar social me é igual, com quem tenho responsabilidades e deveres. Num hospital, perante uma pessoa doente, esta igualdade não existe. Transforma-se numa desigualdade que torna o outro dependente de mim, para quem a minha resposta não é de igual para igual, nem pode ser; por outro lado, uma resposta de poder tem de ser desenhada numa relação de serviço”.

Numa sociedade são reclamados mínimos éticos para uma vivência saudável, mas “a relação com o doente não pode ser feita com base nos mínimos éticos de uma convivência social, porque o doente está frágil, está vulnerável e a sua dependência é muito maior. O doente exige de mim máximos éticos”.

“O outro, sendo igual a mim, num hospital é maior do que eu; muito maior do que eu, mais exigente e é quase a minha transcendência. É aquele a quem, reconhecendo-me igual em humanidade, tenho de reconhecer diferente naquilo que é a capacidade de viver com segurança. Exige que eu lhe faça mais do que faria a mim. Não me posso bastar a fazer pouco”.

E como enfrentar a morte? “Nós estamos muito apegados a uma cronologia que nos faz ter a ideia de que a vida é para ser longa e, depois, quando acontece alguma coisa, somos surpreendidos e sentimo-nos derrotados. Mas isto é a vida: quando não consigo combater a doença, continuo a ter a possibilidade de vencer o isolamento a que uma doença nos pode condenar”.

“A partilha desta compreensão de uma humanitude que se irmana e se iguala, que é capaz de dizer ao doente: ‘– como médico tecnicamente não tenho mais nada para oferecer, mas tenho-me a mim para te acompanhar e tens-me aqui’”, faz toda a diferença pois “a pessoa passa a ter a noção de que é um valor acrescentado. Isto é a experiência da compaixão”.

Mas será que temos o direito de dizer basta? “O direito à dignidade na nossa morte é natural; só se torna artificial mercê de uma chamada conquista civilizacional que quer afrontar e provocar a limitação da vida e do viver, porque acha que a nossa perspetiva é para a imortalidade, muitas vezes não tendo a consciência de que não somos imortais”, refere Filipe Almeida a propósito da eutanásia.

“A importância que temos de dedicar ao respeito pela dignidade que cada um tem na vivência do seu morrer não é mais do que a extensão daquilo que é o respeito que tenho de ter por cada um no seu tempo de viver. Esta dignidade não pode admitir como solução a aniquilação da pessoa como respeito da sua dignidade”, conclui.

O Podcast #fatimanoseculoXX pode ser ouvido na íntegra aqui

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