04 de maio, 2011
REPENSAR A PASTORAL DA IGREJA NUMA SOCIEDADE EM MUDANÇA Ao terminar a minha presidência na CEP, saúdo o Sr. Núncio Apostólico, D. Rino Passigato, em sinal de profunda comunhão com Sua Santidade o Papa Bento XVI. Acolhemos, com alegria, D. Pio Alves e D. Virgílio Antunes, como novos membros do Colégio Episcopal. Recordamos, com gratidão, a boa memória de D. Júlio Tavares Rebimbas e de D. José dos Santos Garcia. A Assembleia Plenária situa-nos perante a responsabilidade histórica de prosseguir o projeto de repensar a pastoral da Igreja em Portugal. A fidelidade à missão e a gravidade da situação atual colocam-nos diante da urgência de discernir novos caminhos e opções pastorais. 1. Um olhar sobre a Igreja Histórica e culturalmente, encontramo-nos num tempo novo. Já não bastam reajustamentos eclesiais. Agir por simples reação também não ajudará ao processo evangelizador. Se João XXIII colocou a Igreja numa dinâmica de “aggiornamento” e se Paulo VI provocou uma nova abertura através da exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, João Paulo II intuiu que a verdadeira mudança deve conduzir‑nos a uma evangelização que deve ter em conta as novas sensibilidades e as diversas linguagens do desenvolvimento humano. Na Visita Ad Limina, em 2007, Bento XVI desafiou-nos a “acolher a mudança, perante uma alteração cultural e sociológica de estruturas e, particularmente, de mentalidades”. A sua visita a Portugal, há praticamente um ano, foi uma particular graça, pela riqueza de orientações e desafios que nos deixou, aos quais importa responder com esperança e com atitudes concretas. A missão da Igreja passa por olhar para o mundo como um novo campo a cultivar, dialogando abertamente com os diversos protagonistas e propondo a verdade e a beleza da fé cristã. Agir como motor da história, onde cada cristão se faz concidadão do mundo e seguidor fiel de Cristo, fará do Evangelho uma proposta feliz para toda a humanidade. 2. Um olhar sobre a sociedade A Igreja em Portugal não pode fugir à responsabilidade histórica de dar o seu contributo para que a atual crise possa gerar uma nova cidadania, assente na participação, na verdade e na fraternidade. São muitos os domínios da vida pública que precisam da firme intervenção dos cristãos na denúncia de tudo o que coloca em causa o equilíbrio social. Movidos unicamente pelo bem comum de todos os portugueses, particularmente dos mais carenciados, não podemos deixar de fazer um apelo junto das nossas comunidades para que reforcem a sua ajuda e continuem a acompanhar aqueles que experimentam carências de vária ordem. A proximidade e o sentido de partilha dos cristãos no seio das comunidades locais são um sinal claro da esperança que se realiza quotidianamente. Os tempos que se avizinham exigirão homens e mulheres à altura dos desafios que se colocam à nossa sociedade. É importante que nas campanhas eleitorais se debata o estado da sociedade portuguesa com ideias claras e propostas autênticas que visem solucionar os problemas estruturais do país (analfabetismo, desemprego, trabalho precário, fraca produção industrial, corrupção, burocracia, pobreza…). A este respeito, é fundamental que haja transparência na apresentação das propostas e absoluta honestidade na sua execução política. Seria insuportável para o país se enveredássemos pela lógica imediatista e pela apresentação de promessas enganadoras e ludibriadoras da real situação em que nos encontramos. Diante de tantos problemas, não podemos ficar inertes. É dever de todos contribuir para a solução do problema. Impõe-se uma consciência crítica social apurada e um novo paradigma cultural que coloque a pessoa humana no centro das decisões. É possível um novo paradigma económico, à luz da economia social cristã? Sim, é possível uma nova “lógica económica”: a do dom, da gratuidade, da fraternidade, da reciprocidade e da partilha justa dos bens de uns para com os outros [1]. 3. Propostas para o diálogo entre a fé e a cultura Servir o homem é servir a ética da vida A missão da Igreja no mundo é estar ao serviço da dignificação da vida humana. É preocupante o conjunto de medidas que pretendem regular aspetos da biologia e da medicina com evidentes reflexos nefastos na estrutura matrimonial e na parentalidade. Uma legislação avulsa, não precedida de debate e fruto de pressões de grupos minoritários, tem marcado a agenda política: “mudança” de sexo, adoção de crianças por casais homossexuais, maternidade de substituição (“barriga de aluguer”), testamento vital, teoria do género, liberalização da investigação destrutiva de embriões e criação de embriões para fins científicos, são alguns dos casos que colocam em causa a ética da vida e da dignidade humana. Solidez e coesão da família A solidez e a coesão da família são o termómetro ético de toda e qualquer sociedade, dado que é a sua célula fundamental. As sociedades contemporâneas ocidentais, concretamente Portugal, defrontam-se com taxas de natalidade baixíssimas que colocam em causa a estabilidade social, cultural e financeira desses países. A este respeito, não podemos ignorar o contributo contraproducente das medidas legislativas tomadas nos anos mais recentes, entre as quais: a equiparação do matrimónio às uniões de pessoas do mesmo sexo, a facilitação do divórcio e a consagração legal da liberalização do aborto. Medidas estas que enfraquecem, sem dúvida, a estrutura da família nuclear. Não podemos resignar-nos a esta situação. A sociedade civil precisa de colocar a família na agenda política, sob pena de hipotecarmos o nosso futuro. A família necessita de um novo enquadramento legislativo com vertentes especiais, nomeadamente nas políticas sociais de apoio à natalidade e à educação escolar de todas as crianças e jovens. Somente com base na coesão familiar é que os jovens poderão projetar a sua vida segundo os valores do amor, da fraternidade, da interajuda, da partilha, da responsabilidade e da gratuidade. Uma estrutura familiar sólida e clara, auxiliada pelos diversos atores sociais, originará uma sociedade renovada. Também aqui a Igreja poderá dar o seu valioso contributo, porque é ampla a sua experiência neste campo educativo, propondo a alegria do encontro com Cristo, eternamente jovem, como caminho pleno de sentido para todos os que o queiram seguir, com determinação e paixão. Educação como futuro da sociedade A missão educativa das novas gerações é a tarefa essencial de toda a sociedade. Não podemos deixar de reconhecer que a família é a primeira instituição educativa. A postura do Estado em relação aos direitos da educação da família é subsidiária. O Estado deve apoiar a família no desempenho dessa missão, suprindo as suas lacunas e dificuldades, mas sem nunca pretender substituir ou dificultar a tarefa educativa das famílias. Embora este princípio seja universalmente reconhecido e esteja inscrito na nossa Constituição, hoje, em Portugal, não vigora um regime de verdadeira liberdade de ensino. A celebração de contratos de associação entre o Estado e as Escolas particulares e cooperativas, no serviço público de educação que prestam, não pode ser concebida a prazo e manter-se apenas enquanto o ensino público não se estende a todo o território nacional. Um outro domínio particularmente relevante e delicado é o da educação sexual. Trata-se de um tema em que entram em jogo os valores éticos e religiosos mais íntimos e profundos da pessoa humana e da família. Neste âmbito é imprescindível a auscultação das famílias e o respeito pelos seus valores. A política como serviço O momento particular que atravessamos torna oportuna a reflexão sobre a dignidade da função política. O Papa Bento XVI é assertivo quando afirma que “o desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores económicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo ao bem comum. São necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral” [2]. Confrontar a nobreza desta função com a incoerência ética, muitas vezes evidenciada pelos políticos, cria em muitos cidadãos a desilusão e o descrédito perante a classe política que nos vem governando. Não é correto, porém, ceder à tentação de condenar, indiscriminada e genericamente, os políticos e as instituições democráticas. Mas é preciso dizer bem alto que a política tem de ser uma vocação de serviço e nunca uma via carreirista de promoção pessoal. A situação atual exige uma consciência mais apurada do sentido do bem comum e da sua primazia em relação aos interesses particulares partidários, sectoriais ou corporativos. A gravidade da crise aconselha uma ampla congregação de esforços no sentido da sua superação. Encontrar soluções de consenso alargado (estruturas políticas e forças da sociedade civil), mesmo para além das maiorias parlamentares, contribuirá para reforçar a confiança e a esperança dos cidadãos. Esta congregação de esforços e a disponibilidade sincera para obter consensos alargados reforçarão certamente a credibilidade externa da sociedade portuguesa no seu todo. É hora de cada cidadão iniciar o processo de mudança de paradigma, a nível pessoal ou institucional. É hora de fazermos memória do Povo que somos e de “navegar por mares nunca dantes navegados” (Luís de Camões, Os Lusíadas), passando além deste mal-estar social profundo. Como diz Fernando Pessoa: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa” (Livro do Desassossego). Uma língua, um ethos, uma cultura, que precisa de ser evocada, “ouvida e vista”, para que Portugal se possa cumprir no presente e no futuro. Conclusão Vários de nós estivemos ontem em Roma para participar na celebração da beatificação do Papa João Paulo II, que por três vezes visitou Portugal e foi peregrino de Fátima. O seu exemplo de corajoso profeta e pastor e de irmão de todos, especialmente dos mais frágeis e carenciados, e a sua intercessão junto de Deus, nos acompanhem sempre nos caminhos de renovação da Igreja, em solidariedade sem fronteiras. É exigente a tarefa que assumimos de repensar a pastoral. Não podemos parar este projeto já iniciado. O mundo não para e a necessidade de corresponder às exigências da cultura atual deve fortalecer-nos para encontrar a melhor forma de anunciar e de viver com alegria a Boa-nova de Jesus Cristo. O interesse da Igreja no seu todo deve sobrepor-se a uma visão eclesial exclusivamente local ou sectorial. Da visibilidade da nossa unidade vem a legitimidade para apelarmos à comunhão de todas as forças democráticas na consumação de um projeto melhor para Portugal. A globalização gerou oportunidades novas que devem ser aproveitadas para trabalharmos em rede, segundo o vínculo da unidade e da diferença, entre a hierarquia e o laicado, a fé e a cultura, a religião e a sociedade. O mandato de Jesus Cristo, no livro dos Atos dos Apóstolos, permanece vivo e atual: “Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo” (Act 1,8). Com humildade e coragem, ser motor da história, atores e não espectadores, faz do cristianismo a narrativa plausível do amor de Deus no seio da humanidade. Esta missão, da qual somos depositários, é fundamental para a renovação da Igreja e da sociedade portuguesa. Como felizmente sabemos, os cargos de responsabilidade na Igreja não são uma carreira de honras, mas missões de serviço. Ao fim destes seis anos como Presidente da CEP, quero agradecer a Deus por o ter sentido muito perto, como a minha força essencial. Quero agradecer a generosa colaboração dos meus irmãos Bispos, assim como de toda a Igreja em Portugal. Agradeço também aos que trabalhais na comunicação social, por levardes as boas novas da Igreja aos quatro cantos da nossa aldeia global. A todos exprimo um sentido e profundo muito bem haja. Fátima, 2 de maio de 2011 † Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz de Braga [1] «A lógica do dom não exclui a justiça nem se justapõe a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro lado, o desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão de fraternidade» (Bento XVI, Caritas in Veritate, n.º 34). [2] Bento XVI, Caritas in Veritate, n.º 71. |