10 de outubro, 2007

Na primeira manhã começou-se por descrever o contexto do evento. Numa primeira fase, o contexto religioso. Aqui sobressaiu o anticlericalismo de algumas zonas: Leiria, Marinha Grande e Santarém em que se insere a Cova da Iria como lugar.
O evento é explicável pela confluência de múltiplos factores: primeiro como acontecimento religioso e só depois como acontecimento sócio-político. De facto, as aparições são um acontecimento religioso, e isto foi muito salientado, e assim deverão ser interpretadas em primeiro lugar hermenêutico. Só isto permite compreender o catolicismo português do final do século XIX e do séc.XX. Ambos os fenómenos estão imbricados um no outro. Nesta fase em Portugal destaca-se o surgir do movimento católico com um novo laicado e com um novo modelo de clero mais secular. Assiste-se a uma renovação do catolicismo português de que Fátima é sinal. Fátima não é apenas um sinal do passado nem produto daquilo que está antes, pois o catolicismo procurava um novo enraizamento popular que Fátima faculta e deixa encontrar. Surge um novo programa devocional dos militantes católicos em que a espiritualidade fica marcada pela chamada “devoção das três rosas”: a centralidade da figura papal, a devoção eucarística e a devoção mariana. Por outro lado, os congressos eucarísticos internacionais tornaram-se fundamentais para promover esta espiritualidade e para a própria renovação do catolicismo. Assim há que entender o papado de Leão XIII neste quadro. O Rosário surge aqui como uma referência aglutinadora e mobilizadora dos católicos num contexto também de uma angústia dolorosa no presente e de algum medo no futuro. No ar paira esta angústia e esta esperança. Esta era a visão mobilizadora em 1909. A questão da República, por seu turno, não era então uma questão nova para o mundo católico, visto que alguns grupos e sensibilidades já a pressentiam. A ordem social estava também ligada à ordem política e à ordem religiosa. Não é possível separar estas esferas. Os próprios católicos sabiam muito bem o que era e o que pretendia o mundo liberal. A Igreja, na sua hierarquia também, tinha consciência da situação e dos desafios. Neste cenário, a República, que pretendia que a ordem pública fosse acatada, porque continua a ter muitos problemas com o acatamento da ordem pública e isto para a República isto é de primeira importância, vê-se desafiada. Aquilo que as novas sensibilidades do catolicismo esperam é também em parte partilhado pelo mundo republicano. Esta tese foi desenvolvida como correctivo da historiografia clássica.
Foi mostrado como em 1911 a lei de separação entre a Igreja e o Estado continuava apesar de tudo a tradição regalista portuguesa que já vinha de trás, o que limitava a liberdade religiosa. Não obstante isto tudo, assiste-se a um revigoramento do catolicismo, porque a vida das populações continua. Por vezes faz-se a história se como a história não existisse sem as pessoas. Uma dessas pessoas que desobedeceu civilmente foi o conhecido sr. Pe. Cruz, que continuou a acompanhar todo o processo. Este papel das populações e do povo em geral foi evidenciado à saciedade.
Em 1913 o episcopado cauciona naturalmente a “União Católica” precisamente para bater nas urnas a República, do ponto de vista legal, porque a República não reconhecia a hierarquia católica e queria subjugar a Igreja ao Estado, no fundo mantendo o antigo beneplácito régio. Desde 1911 o afrontamento levou o episcopado a perceber que era preciso estar não fora do movimento social, mas antes (estar) dentro, presente e descobrir novas formas de organização e de intervenção. Por tudo isto, o catolicismo português não foi apenas uma resistência à República, como a historiografia clássica apresenta. O catolicismo português entendia que os católicos deveriam sê-lo inserindo-se na sociedade como o fermento na massa. Neste sentido, em 1917 a prossecução da vida cristã dá-se por uma presença missionária, pela prática reparadora e por um anseio pela paz face ao desastre da I Guerra mundial. Este é o ambiente das aparições. Tem-se assim um tempo político preciso com a implantação da República a partir de 1890 acompanhada por uma crise social liberal. A própria República enquanto tal legitima-se como um movimento de renovação, de regeneração. Daí a reacção anticlerical mas também a semelhança quanto aos anseios de regeneração.
Do ponto de vista cultural é um período de diferenciação muito forte. Aparece uma nova geração que nem é monárquica nem é republicana ainda. Surge um espiritualismo humanista desde Pessoa até Pascoaes. No fundo, são os representantes da modernidade em Portugal. Estes constituem os grandes pensadores portugueses ditos modernos e contemporâneos. Do ponto de vista social, a República tem medo do anarquismo, sempre teve muita dificuldade em lidar com a rebeldia e a insubordinação. Portugal entra na Guerra por causa das colónias, e a República aproveita a actividade da Igreja neste campo. Nesta conjuntura a Igreja sobrepõe-se à República. Tudo dependia da capacidade missionária da própria Igreja para que a República conseguisse impor-se nas colónias. A República precisava de legitimação.
Por isso, em 1917 a legitimidade funda-se na convicção e na autenticidade. Isto é no fundo um problema moderno, da modernidade. Daí que a resistência do religioso não se tivesse operado no terreno do político mas precisamente no terreno do religioso. Isto valoriza à maneira moderna a convicção. Na verdade, a Igreja disputava a influência do religioso na própria sociedade. Aqui é que se jogava tudo. Daí a ênfase da Igreja em algumas práticas pastorais como a Primeira Comunhão, a comunhão eucarística e a adoração do Santíssimo como sinais integradores.
Finalmente, em 1919 assiste-se ao restabelecimento das relações entre a Igreja e o Estado, depois de essa relação ter sido quebrada com o fim da nunciatura apostólica.
Para lá do contexto regional e nacional foi evocado o contexto problemático internacional, ao qual Fátima se refere também. Em 1914 a Rússia e os estados prussianos entram na I Guerra e depois a Polónia tem de se defender dos russos. A decisão da Alemanha e da Áustria de guerrear contra os sérvios, os russos, os franceses e os britânicos após a extinção da dinastia dos Habsburgo levou a um conflito cujas proporções não eram previstas. Isto levou a que em ambos os lados dos beligerantes se encontrassem católicos. Portugal entrou na Guerra, entrou neste dilema. Daí as aparições do anjo da Paz em 1916.
Já em 1912 Pio X (1835.1903-1914) tinha percebido que os horizontes da Europa estavam escuros. Bento XV (1854.1914-1922) apelou então à paz, fortemente. Toda a Igreja ansiava pela paz. Mesmo depois do armistício, o tratado de Versailles não apaziguava as coisas, visto que impunha condições vergonhosas e humilhantes aos vencidos (Alemanha, Áustria, Hungria e Bulgária).
Foram recordadas as figuras de Karl Marx (1818-1883), do czar Nicolau II (1818-1918) e sobretudo a violência militante de Lenine, o qual foi muito influenciado pelas circunstâncias da sua própria família, apesar do avô materno judeu e da mãe luterana. Foi ressaltado já em 1922 o papel activo da Polónia na resistência católica à invasão soviética até Varsóvia bem como a luta da Igreja na preservação da identidade nacional. Esta foi uma Igreja resistente, enquanto que a Igreja ortodoxa russa foi mesmo uma Igreja mártir porque enfrentou uma situação trágica.
Depois do evento foram visitadas as reacções do povo, da hierarquia, da sociedade e do próprio estado.
Quanto aos acontecimentos das aparições de 1917, o povo começou por ter muitas dúvidas, como aconteceu na própria família dos Pastorinhos. As mães de Jacinta e de Lúcia começaram por não acreditar. O Pe. Formigão e o visconde de Alvaiázere também duvidaram. Mas a partir dos anos 30 a interpretação dos acontecimentos terá de ser diversa, depois da carta episcopal que reconhece a respectiva credibilidade.
Há que ter em conta também o contexto envolvente. As leis de separação entre a Igreja e o Estado acabaram por impedir até a liberdade de culto. Logo não era uma verdadeira separação. Foram mesmo proibidas as manifestações públicas da fé. Ora, a situação da Cova da Iria surge aqui como algo novo porque não era promovida pela própria hierarquia, mas pela sociedade civil. Isto era uma dificuldade para a República. Desta vez a liderança da Igreja não era aquela entidade que promovia a manifestação pública, mas o próprio povo enquanto tal. Nos dias 13 as manifestações populares e a afluência do povo eram espontâneas, contra o que nada poderia ser feito. Junto com esta tradição de fé juntava-se o hábito da tradição romeira portuguesa, desde há muito. Para facilitar essa afluência, entre 1921 e 1922 procedeu-se à aquisição de vários terrenos adjacentes ao local das aparições. Juntaram-se e permutaram-se vários terrenos junto à capelinha. De tal forma foi natural e acolhido este processo no seio do povo que a dinamitação da capelinha em 06-03-1922 provocou o efeito contrário daquele pretendido pelos infractores.
No que diz respeito à hierarquia, assistiu-se a um contraste. O povo abeirou-se espontaneamente, enquanto que a hierarquia teve muitas dúvidas, hesitou bastante. O fenómeno era acusado de ser uma superstição fruto da ignorância, quer por parte de algumas personalidades da Igreja como sobretudo por parte de membros da maçonaria e da República. A hierarquia, de facto, desconfiava. Até Pio X adverte na Pascendi para estar vigilantes, seguindo à risca as linhas orientadoras do concílio de Trento. Há que ter presente que naquela época há várias aparições, e por isso a Igreja tem de ter várias cautelas. Foram recordadas as aparições a duas crianças em La Salette em 19-09-1846 com aprovação do bispo local, as aparições em Lourdes reconhecidas em 1862. Ora, a reserva da hierarquia incomodou o próprio mundo republicano que queria um interlocutor objectivo e claro. Em suma, o mundo republicano mais radical reprovou, a hierarquia duvidou e o povo aceitou espontaneamente.
As reacções políticas foram analisadas de seguida. São mais acicatadas. Distinguem-se dois níveis: o da situação religiosa em Portugal e o das correntes ideológicas.
No que toca ao primeiro âmbito, a situação religiosa em Portugal caracteriza-se por um laicismo que atinge pelo chamado pensamento livre o qual não aceita nem a hierarquia católica nem a Igreja como instituição. A situação da Igreja em Portugal no final do séc.XIX de facto não é brilhante. O próprio Abúndio da Silva criticava um clero secularizado, mesmo sendo um católico militante. Ressaltam neste período a este nível a Associação dos Livres Pensadores fundada em 1880 e desde 1903 a Federação Portuguesa do Livre Pensamento, para além do papel preponderante da Maçonaria. A partir de 18-11-1877 a “Associação Promotora do Registo Civil” pretende tirar à Igreja a responsabilidade do registo dos momentos principais da vida de cada cidadão. Eram verdadeiros apóstolos da laicização reclamando também a ruptura das relações diplomáticas entre o Estado e a Santa Sé.
Em 1897 a Carbonária portuguesa atinge todas as camadas sociais. Fundada por Luz de Almeida era composta por anarquistas e por fabricantes (alguns deles) de artefactos bombistas. Em 26-03-1911 o maçónico Afonso Costa defendia a ruptura (não separação) entre a Igreja e o Estado. Afirmava que em duas gerações acabaria o catolicismo em Portugal, segundo ele causa das desgraças em Portugal. Não admira que em Agosto de 1911 os bispos da Guarda e D. António Barroso bispo do Porto tivessem sido presos e sofrido às mãos da República. Com efeito, a República prendia bispos e exigia dar o beneplácito à sua nomeação, queriam até ler antes os depoimentos e homilias episcopais. Era a tentativa totalitária do controle sobre a Igreja. Queriam no fundo não apenas a laicização da sociedade mas sobretudo da Igreja, pretendendo colocá-la sob a alçada do Estado. Guerra Junqueiro pretendia não só secularizar a escola mas sobretudo a própria Igreja para que ela não tivesse qualquer função na sociedade contrária ou em divergência da do Estado.
Neste contexto, a questão central em 1917 é de carácter sócio-cultural e não uma questão religiosa como é a de 1910.
As correntes ideológicas foram revisitadas nos respectivos jornais. Para o jornal maçónico “O Século” Fátima foi interpretada como uma invenção com objectivos financeiros. Apesar de tudo, em 1917 Sidónio Pais amortece um pouco as críticas acérrimas dirigidas pelo mundo do pensamento livre e maçónico. Mas em 1924 o Estado proíbe as romagens a Fátima, contra o que combatem o Centro Católico e os jornais católicos, reclamando inclusive uma desobediência civil, mas dentro do quadro da própria lei. Esta animosidade já se tinha pressentido em 13 de Agosto de 1917 quando o Administrador de Ourém tinha “raptado” os Pastorinhos para que as aparições do consueto dia 13 não tivessem lugar. A reacção popular produziu exactamente o efeito contrário.
Foram então revisitados os vários actores deste processo de avanços e de recuos entre 1920 e 1922. Como antagonistas sobressaíram o administrador de Ourém, o governador civil de Santarém, o governador central, o ministro do Interior, António Maria Baptista, António Rodrigues e António Maria da Silva. Todos se comportaram à velha maneira jacobina. Este último chegou mesmo a proibir a realização de cerimónias em Fátima.
No que toca às relações entre a Igreja e o Estado, Afonso Costa destruiu-as. Foram retomadas por Bernardino Machado, Egas Moniz e Sidónio Pais em 1917. O presidente da República impôs mesmo ao núncio apostólico Mons. Locatelli o barrete cardinalício, de acordo com a antiga tradição. Em 01-02-1926 Bernardino Machado declarou num jantar no Hotel do Porto a D. Barbosa Leão que o conflito Igreja-Estado era coisa do passado. Não há que não esquecer que Bernardino Machado era grão-mestre da Maçonaria do Grande Oriente Lusitano.
Assim, Fátima não se constitui como um momento da questão religiosa a propósito das relações entre a Igreja e o Estado, porque o povo, apesar de hostilizado, continua a acolher espontaneamente o fenómeno das aparições, continua a afluir a Fátima. A população não aderiu ao livre pensamento. A questão religiosa passava assim para o campo sócio-cultural. Foi notado como na actualidade pós moderna, ao contrário da época, aquilo que era uma questão entre a Igreja e o Estado agudizou-se ao ponto de se tornar hoje uma questão entre a Igreja e a sociedade. Hoje, depois da secularização do Estado, assiste-se à secularização da sociedade civil. Foi notado como é necessário hoje conhecer o reticulado das associações maçónicas e do pensamento livre. Está por estudar o papel e interesses que estão por trás das motivações da maçonaria, dos presidentes de câmara, dos presidentes das juntas de freguesia. É necessário precisar muito melhor até que ponto terão instrumentalizado o fenómeno das aparições para os seus próprios interesses, isto quer a nível do poder local quer a nível do poder central. Tudo isto faz com que a Igreja volte hoje à situação da Igreja primitiva, uma Igreja diasporizada em que os cristãos são novamente chamadas a ser fermento que leveda a massa.
José Carlos Carvalho


PDF

HORÁRIOS

06 jul 2024

Rosário, na Capelinha das Aparições, e procissão das velas, no Recinto de Oração

  • 21h30
Terço
Este site usa cookies para melhorar a sua experiência. Ao continuar a navegar estará a aceitar a sua utilização. O seu navegador de Internet está desatualizado. Para otimizar a sua experiência, por favor, atualize o navegador.