06 de dezembro, 2022

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“Deixemo-nos primeiro enamorar por esta oração”

Frei André tem 31 anos e é natural de Mafra. Nesta entrevista fala-nos do rosário, enquanto exercício espiritual.

 

 

O apelo de Frei André de Santa Maria, carmelita descalço, no Convento de Avessadas, em Marco de Canaveses, é tanto mais comovente porquanto nos alerta para o risco que corremos, tantos de nós, quando rezamos o Terço: “contentamo-nos, tantas vezes, em papaguear certas fórmulas, passando as contas a alta ou mesmo altíssima velocidade. E chegamos ao fim sem nos darmos conta de que começámos”.

Frei André tem 31 anos e é natural de Mafra. Nesta entrevista fala-nos do rosário, enquanto exercício espiritual, quando “a repetição dos Pai-nossos e das Avé-Marias tornam-se a música de fundo que acompanha este tempo em que Maria nos fala de Jesus, nos leva a Ele, o que vai fazendo com que o nosso coração e a nossa vida se vão transformando suave mas radicalmente”.

 

A oração do Terço foi pedida insistentemente por Nossa Senhora durante as Aparições em Fátima. Como a descreveria e que significado tem esta oração mariana?

São Paulo VI utilizou uma expressão muitíssimo bela para se referir ao Rosário: compêndio do Evangelho. Creio que esta expressão diz muito do que é esta oração. Os vários mistérios em que meditamos correspondem como que a um resumo da vida de Jesus. Ao recitar o Rosário, somos convidados a adentrar-nos nesses momentos chave da vida do Senhor. Mas não como um mero espectador que vê uma peça de teatro e que depois do espetáculo regressa à sua vida como se nada fosse. Adentramo-nos na vida do Salvador com a consciência de que essa vida fala à minha vida, que os mistérios que medito me impactam e querem transformar o concreto do meu ser. E fazemo-lo na companhia d’Aquela que melhor o viveu, d’Aquela que guardava tudo no seu coração (cf. Lc 2,51) e que hoje quer levar-nos pela mão para que nós, seus filhos, possamos fazer um caminho de união a Cristo. Assim, o Rosário é um convite feito por Maria para, com Ela e na Sua companhia, meditar a vida do Seu Filho, para que Ele venha à nossa.

 

Sendo um apelo à intercessão e à conversão, como deve ser rezada?

Creio que a conversão pode ser pensada como um voltarmos o nosso coração para Deus. É uma reorientação, uma mudança de sentido. Se antes caminhávamos por uma senda que nos afastava ou, pelo menos, não nos aproximava de Deus, a conversão é o tomar um novo caminho que nos aproxima mais e mais de Deus, dos seus sentimentos, dos seus critérios. O Rosário, como este apelo à conversão, pode ser visto como um itinerário, como uma estrada segura que nos ajuda a caminhar em direção a Deus. Como rezá-lo? Percebendo quem sou eu e quem é Aquele cuja vida medito em cada mistério. Cair na conta que o faço pela mão da Mãe que me foi dada por Jesus e que nunca me abandona, que nunca me deixa só e que só deseja o meu maior bem. Compreender que o mistério que medito é um mistério que fala à minha vida. Fazer o confronto entre as situações concretas que vivo – que me preocupam ou serenam, me entristecem ou me alegram – com as que viveu Jesus e que medito nos vários mistérios, para ir assumindo os Seus valores, o seu modo de pensar e de ler a realidade. Assim, pouco a pouco, vamo-nos aproximando de Deus, vamos dando conta de como Ele, realmente, vai chamando-nos cada vez mais e, sem nos darmos conta, vai fazendo maravilhas na nossa vida, tal como fez outrora na vida de Maria.

 

No Carmelo, imagino, que possa ser tida como um exercício espiritual permanente... Pode desenvolver a ideia?

O Carmelo é todo de Maria. Este é um refrão comum no Carmelo mas mais do que um simples refrão, é um recordar constante sobre o cerne da nossa vocação. Os carmelitas têm a enorme ousadia de se chamarem irmãos/irmãs da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo. Ao dizermo-nos irmãos de Nossa Senhora –que é nossa Mãe e Rainha – colocamo-nos num patamar de proximidade e de intimidade muito grande com Maria. Maria é a nossa irmã mais velha, aquela que, como irmã extremosa, nos indica os caminhos a percorrer, nos mostra as virtudes a cultivar e nos aponta a meta a atingir. Assim, Maria é uma presença constante na vida do/da Carmelita. Por isso, o Rosário, que não sendo uma oração comunitária obrigatória, é um momento por excelência para viver em companhia de Maria que, por meio dessa oração, cumpre a sua missão: conduzir-nos mais e mais à intimidade com Cristo.

 

Com Maria, aprendemos que rezar é sobretudo estar com Jesus Cristo… de que forma uma oração tão repetitiva quanto é a do rosário permite este exercício espiritual?

St. Teresa de Jesus definia oração como um tratar de amizade estando muitas vezes a sós com Quem sabemos que nos ama (cf. V 8,5). Para os carmelitas, a oração é esta relação em que estamos com Jesus, Aquele que nos ama. Também o Rosário cumpre este requisito, ou pode cumprir. Se repetirmos mecanicamente os Pai-nossos e as Avé-Marias, então, creio, não estamos a rezar convenientemente. Pensemos no exemplo seguinte: podemos ensinar um papagaio a repetir o Pai-nosso e a Avé-Maria. Mas quando ele o diz não está a rezar. Está a papaguear. Ora, a dificuldade do Rosário é esta: contentamo-nos, tantas vezes, em papaguear certas fórmulas, passando as contas a alta ou mesmo altíssima velocidade. E chegamos ao fim sem nos darmos conta de que começámos. Assim, creio, o problema está na forma como olhamos para o Rosário. Se eu compreender o Rosário como um momento em que Maria me toma pela mão e me “mostra” a vida de Jesus, como se estivéssemos no seu colo a ver o álbum de fotografias da vida do Senhor, então a minha predisposição muda. Então, o mais importante já não são os Pai-nossos e as Avé-Marias mas este tempo em que estamos no colo da Virgem a “ver” ou, se quisermos, a “escutar” da boca/do coração de Maria o que se passou na vida do Senhor naquele momento determinado. Assim, a repetição dos Pai-nossos e das Avé-Marias tornam-se a música de fundo que acompanha este tempo em que Maria nos fala de Jesus, nos leva a Ele, o que vai fazendo que o nosso coração e a nossa vida se vão transformando suave mas radicalmente.

 

Conseguimos através da contemplação dos mistérios do Terço chegar ao verdadeiro rosto de Deus?

Os mistérios do Rosário têm a virtualidade de nos inserirem em momentos chaves da vida de Cristo. Portanto, esta pergunta, o que verdadeiramente questiona, é se por Cristo chegamos ao verdadeiro rosto de Deus. O próprio Jesus disse ao Apóstolo Filipe em jeito de reprimenda: «Há tanto tempo que estou convosco, e não me conheces, Filipe? Quem me viu, viu o Pai» (Jo 14,9). Quem vê a Cristo, vê o Pai. Cristo é o verdadeiro rosto do Pai. É por isso que o Evangelista João, logo no início do seu Evangelho, deixa claro que a Deus nunca ninguém o viu, mas que o Filho no-lo deu a conhecer (cf. Jo 1,18). Creio que a chave está aqui, porque o Rosário é uma oração cristológica mais do que uma oração mariana. Melhor dito: o Rosário, porque é uma oração mariana, é uma oração cristológica. E isto porque Maria nunca chama a atenção para si mas sempre para o Seu Filho. Isso nos diz o Evangelho e foi assim mesmo que aconteceu em Fátima: Nossa Senhora aponta sempre para Deus, nunca para si. Mais, Ela própria é Transparência de Deus. Olhando para Ela, Ela como que desaparece aos nossos olhos e, sem sabermos muito bem como, deparamo-nos com Cristo. E que faz o Rosário? Por meio de Maria somos colocados em contacto com Cristo, “vemos” o verdadeiro rosto de Cristo. E o rosto de Cristo é o verdadeiro rosto de Deus. Por isso sim, podemos chegar ao verdadeiro rosto de Deus porque, por meio da oração do Rosário, o podemos desvelar em Cristo.

 

A oração do Rosário é também o sinal da perseverança da nossa consagração ao Imaculado Coração de Maria: o mal nunca triunfará. Por isso, podemos dizer que se trata da verdadeira oração da Paz e pela Paz?

Não sei se se poderá dizer tanto. Não me recordo onde mas creio que a própria Ir. Lúcia refletiu sobre o motivo da insistência de Nossa Senhora na oração do Rosário. Efetivamente, poderíamos perguntar-nos: por que motivo nos manda o Céu que rezemos o Rosário? Não seria a missa diária uma oração tão boa ou mesmo melhor que o Rosário? Ou porque não a Liturgia das Horas ou a Lectio Divina? É o Rosário uma oração “mágica”, mais poderosa que todas as outras? Eu creio que não e parece-me que a Ir. Lúcia pensava o mesmo. Então, porquê a insistência na oração do terço? A Ir. Lúcia diz algures que pensava que Nossa Senhora nos mandou rezar o terço simplesmente porque o podemos fazer. Efetivamente, há pessoas que não têm a possibilidade de participar diariamente na celebração da Eucaristia. Há ainda muita gente que não sabe ler para poder rezar a Liturgia das Horas ou fazer Lectio Divina. Mas o Rosário, sim, todos podemos. E todos é todos. Todos conseguimos arranjar quinze minutos do nosso dia para rezar esta oração. Pelo seu teor repetitivo, todos a sabemos e todos a podemos rezar nas mais diversas ocasiões. E onde entra a Paz nesta equação? Parece-me que a Paz, ainda que seja um dom de Deus, tal como todos os dons, requer algo de nós. Efetivamente Deus não é um mago que agita a varinha e, magicamente, aparece a Paz; antes, Ele faz algo muito mais interessante: dá-nos a ocasião para sermos instrumentos efetivos de Paz no meio do nosso mundo. Mas para sermos instrumentos efetivos da Paz, temos de mudar o nosso coração. No entanto, essa mudança só Deus é capaz de operar. Então sim, porque o Rosário é oração, ou seja, nos coloca em contacto com Deus, então vai mudando o nosso coração, vai fazendo da nossa vida um farol de Paz para o nosso mundo. Assim, parece-me melhor dizer que toda a oração, porque tem este efeito, é sempre oração de Paz e pela Paz.

 

Como poderemos estimular a oração junto dos mais novos e introduzi-los neste mistério a que o Rosário nos pode conduzir?

Creio que mais do que buscarmos formas e novidades, deveríamos parar e fazer um exame de consciência sério. Deveríamos responder a esta simples pergunta: o Rosário é importante para mim? Permitam-me uma comparação: se um pai é de um dado club, muito provavelmente o filho também o será. E isto porquê? Porque o pai transmite ao filho a sua alegria, o seu amor ao seu club. De forma análoga, se o Rosário for – e perdoem-me a expressão – um frete, se for simplesmente uma obrigação que tenho de cumprir, de despachar, então podemos dar as voltas que quisermos que nunca convenceremos ninguém, que nunca seremos capazes de inculcar noutro um gosto que não temos. Mas se o Rosário for importante para mim, se for um momento em que, por meio de Maria, me encontro verdadeiramente com Cristo, que descubro o Seu rosto por meio da intercessão da Sua e nossa Mãe, então já temos a resposta. Não se trata de mostrar ou inventar nada. Trata-se de falarmos com toda a verdade sobre esta oração que me/nos diz tanto. Trata-se de darmos o testemunho alegre de que a nossa vida fica sempre mais bela, mais rica quando Deus está nela. Deixemo-nos primeiro enamorar por esta oração. Melhor, deixemo-nos enamorar por Aquele cuja vida meditamos nesta oração. Façamo-lo juntamente com Maria, nossa Mãe. E os jovens, detetando esta nossa fonte de alegria, desejá-la-ão para si.

 

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05 nov 2024

Missa, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima

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