20 de junho, 2009

“Desafios da criança à Igreja e à Sociedade”

 
 
20 de Junho de 2009 
 
Introdução
            1. Um dos sinais da harmonia e da maturidade de uma comunidade humana, trate-se da família, da Igreja ou da sociedade, exprime-se no lugar que dá às crianças como seus membros de pleno direito, reconhecendo o contributo que dão à comunidade, tão ou mais importante e decisivo como o de todos os outros seus membros. Não se trata apenas de respeitar as crianças que ainda o são pela idade e fase de desenvolvimento; trata-se de um desafio a que todos os membros da comunidade, em qualquer idade e em todas as idades, não apaguem no seu coração a criança que já foram e que permanece como modelo inspirador do que desejariam ser, no melhor dos seus ideais. Ao falar dos desafios colocados pelas crianças à Igreja e à sociedade, não me referirei apenas às crianças definidas como grupo etário, mas à criança que continua a existir em cada um de nós e que é anseio de simplicidade de vida e de amor experimentado como ternura, desejo de mitigar a racionalidade da nossa vida com a mensagem abrangente dos símbolos e convite da vida a descobrir e a construir em cada dia mais, atraídos pela sua plenitude. A minha chave de leitura é mais bíblica e teológica do que filosófica. Espero que seja também poética, homenagem prestada a figuras modelo que me ajudaram, em todas as fases da minha busca da maturidade, a guardar a criança que há em mim e que, desejo profundamente, seja o último rosto da minha vida neste mundo. Não gostaria de acabar “infantil”; mas desejaria muito morrer com um coração de criança.
 
            Da protologia à escatologia
            2. O primeiro desafio que a criança apresenta a todos nós é o de compreender a vida como um processo a acontecer, sempre a construir, fruto da luta da liberdade, inserido na comunidade, seja ela a família nuclear, a família cristã ou a família humana. É um erro de perspectiva considerar a infância como uma etapa de crescimento e descoberta da vida e a criança um ser em construção, em oposição ao adulto, o ser acabado. O homem é sempre, neste mundo, um ser em construção. A vida humana, desde o seu início até à sua plenitude, está em contínua construção. É a longa caminhada da vida.
            O ritmo da criação e o da formação do universo recapitulam-se em cada homem. Para um e outro, há um princípio e um fim a atingir, ambos envoltos no mistério, de que a ciência apenas se aproxima e em que só a Revelação e a Fé nos conduzem a uma certa inteligibilidade. E a Revelação apenas nos diz que ao princípio e ao fim preside o Verbo, a Palavra eterna e criadora de Deus. Entre a criança e o adulto não há diferenças fundamentais, são apenas momentos e etapas dessa longa descoberta da vida. Quem não aceitar que o princípio e o fim estão envoltos no mistério, procurará a sua concretização em momentos controláveis pela razão: o início identifica-se na constituição do sistema nervoso central, outros dizem, na capacidade relacional do ser humano. O fim é, por sua vez, identificado na morte física, embora a discussão sobre a sua definição continue em aberto. É uma maneira de excluir o desconhecido, de negar o mistério.
            Na criação como na vida humana o princípio encerra a notícia do fim. A plenitude final, a descobrir e a construir durante o período temporal da vida terrena, está toda anunciada e potencialmente contida na força do início. A filosofia tomista definiu esse processo como a passagem da potência ao acto. Essa potência é a força do Verbo criador; o acto, plenitude realizada, será o homem escatológico, obra de Cristo ressuscitado. O mistério do princípio e do fim só se esclarecem na força criadora do Verbo eterno de Deus, manifestado na pessoa de Jesus Cristo. É nesse sentido que a Gaudium et Spes afirma que o mistério do homem só se esclarece no mistério do Verbo encarnado (G.S. n. 22).
            Hoje, a própria ciência está aberta à afirmação de que os primeiros meses de vida do ser humano são constitutivos de toda a sua potencialidade, e encerram as características da sua personalidade.
 
            3. O princípio e o fim não se anulam mutuamente, não são apenas sucessivos mas interpenetram-se no tempo. Na sua busca da vida, o adulto anseia ser a criança que já foi e a plenitude da vida é facilmente idealizada como a realização definitiva da verdade e da simplicidade da criança. Santa Teresa de Lisieux, nos seus escritos autobiográficos, referindo-se ao período da sua vida entre os quatro anos e a sua vocação de carmelita, escreve: “este período estende-se desde a idade de quatro anos e meio até aos meus catorze anos, época em que reencontrei o meu carácter de criança, ao mesmo tempo que entrava no sério da vida”[1]. Toda a sua existência neste mundo foi um redescobrir, em cada etapa, e com a exigência do realismo da vida, o ideal e o dinamismo da criança que foi, e que deseja continuar a ser até ao fim. Por isso, afirmei que não se trata, apenas, de respeitar as crianças, mas de descobrir, em cada momento da nossa caminhada na vida, a criança que está em nós.
            Contemplemos o mistério deste início, onde se exprime toda a força criadora da Palavra eterna, em ritmo de encarnação, pois toda a fecundidade de Deus se realiza na simplicidade de duas células que se encontram, dando origem a um novo ser. A vida começa a acontecer, porque começa a crescer, no corpo e no espírito: o diálogo silencioso com a mãe até ao primeiro contacto com a luz do dia, a primeira experiência de ser envolvida em ternura, o primeiro olhar e o primeiro sorriso. A partir dali, basta crescer, encetar a longa caminhada da vida, até ao momento em que toda a potencialidade desse início se torna plenitude de vida para sempre.
            A vida é a mesma, numa identidade pessoal, desde o início até ao fim. A nossa linguagem habitual corre o risco de não afirmar essa grandeza da vida em todos os momentos da caminhada. “Infantil” exprime, tantas vezes, o que ainda não é vida a sério, o que é ainda mais claro quando falamos de “infantilidade”, de “criancices”, esquecendo que “criancices” só os adultos as podem praticar, quando não assumem a grandeza e a responsabilidade da idade adulta. As crianças são capazes de expressões de vida tão ou mais adultas do que as daqueles que, pela idade, se consideram adultos, na linha do amor, da generosidade e mesmo da manifestação sobrenatural da santidade. Jesus aos doze anos, no Templo de Jerusalém entre os doutores, revela a consciência da sua identidade e da sua missão, mostra a maturidade dos grandes profetas e a exclusividade da Sua relação única com Deus seu Pai (cf. Lc. 2,41ss).
            Estamos mais predispostos a considerar a grandeza da vocação dos Apóstolos, quando o Senhor lhes diz: “e tu segue-Me”, do que a tomar a sério o chamamento de Deus, dirigido a uma criança. E no entanto, isso acontece. Deus chama Samuel ainda criança (1Sam. 3,1ss). Jeremias sente-se escolhido, chamado e consagrado, desde o seio de sua mãe (cf. Jer. 1,4-5) e João Baptista é consagrado no seio de sua mãe (cf. Lc. 1,39ss). Ao longo dos séculos, quantas vocações enraizaram no chamamento de Deus a uma criança. Santa Teresa de Lisieux situa o seu chamamento a uma entrega total na idade de dois anos. Escreve à sua irmã de sangue e sua superiora no Convento: “Ouvia dizer frequentemente que Pauline seria, certamente, religiosa; então, sem saber exactamente o que isso significava, pensei: também eu serei religiosa. É uma das minhas primeiras recordações e nunca mais mudei de resolução!... Fostes vós, minha Mãe querida, que Jesus escolheu para me desposar com Ele. Nessa altura não estáveis junto de mim, mas já se tinha formado um laço entre as nossas almas… vós éreis o meu ideal, eu queria ser semelhante a vós e foi o vosso exemplo que me guiou desde a idade de dois anos e me arrastou para o Esposo das Virgens”[2]. Desde os quatro anos sente o anseio radical da perfeição e da santidade. “Logo que comecei a pensar seriamente, o que aconteceu sendo eu ainda muito pequena, bastava dizerem-me que uma coisa não era bem, para que eu não desejasse repeti-la duas vezes”. “Compreendi que havia muitos degraus na perfeição e que cada alma era livre de responder às propostas (aux avances) de Nosso Senhor, de fazer pouco ou muito por Ele, numa palavra, de escolher entre os sacrifícios que Ele pede. Então, como no tempo em que era ainda muito pequenina, gritei: Meu Deus, eu escolho tudo. Não quero ser uma santa a meias, não me mete medo sofrer por Vós; só temo uma coisa, guardar a minha vontade; tomai-a, porque eu escolho tudo o que Vós quiserdes”[3].
            Em Francisco e Jacinta Marto temos dois exemplos, muito perto de nós, de chamamento de crianças à santidade. E ao beatificá-los, a Igreja confirmou essa santidade vivida. As crianças são capazes da ousadia da santidade e esta é a mais adulta manifestação da vida.
 
            A criança, anúncio do Reino de Deus
            4. É o próprio Jesus quem relaciona o acolhimento do Reino de Deus com a atitude das crianças. Trouxeram a Jesus umas crianças para que Ele as tocasse, isto é, as abençoasse ou lhes fizesse uma “festinha”. Os discípulos, sempre preocupados em defender Jesus das multidões, tentam impedi-las. Acham que o momento não é para “criancices”. Diz o texto de Marcos: “ao ver isto Jesus zangou-se e disse-lhes: deixai vir a Mim as criancinhas, não as impeçais, porque o Reino de Deus pertence àqueles que lhe são semelhantes. Em verdade vos digo, quem não acolher o Reino de Deus com atitude de criança, não entrará nele” (Mc. 10,13-16). Noutra passagem, que ainda comentaremos, a criança aparece como o modelo de discípulo. Aqueles que o Senhor convida a seguirem-n’O como discípulos, têm de ter um coração de criança.
            O verbo grego que é traduzido por “acolher o Reino de Deus”, significa a simplicidade de quem acolhe um presente, uma pessoa, uma dádiva. A atitude das crianças que Jesus considera fundamental para quem quer ser seu discípulo, é a simplicidade e a alegria de quem acolhe. O Reino aparece, aqui, como uma dádiva de Deus. Se os adultos, para serem discípulos, têm de ter um coração de criança, está dito que as crianças podem ser discípulos de Jesus, parece mesmo serem aqueles de quem Jesus gosta mais.
            Extravasando o âmbito do comentário a este texto, podemos partir dele para encontrar outras concretizações desta convergência da criança com o Reino de Deus, ou seja, no momento actual da História da Salvação, com a Igreja, Povo de discípulos, anúncio do Reino de Deus à sociedade de cada tempo.
 
            5. A vida descobre-se em comunidade. Na longa caminhada da vida, ninguém a descobre e constrói sozinho. E a primeira etapa dessa caminhada, a que corresponde à infância, é aquela em que esta dimensão da vida humana é mais clara: nenhuma criança subsiste sozinha. A sua vida depende totalmente da comunidade em que está inserida, em que é amada, apoiada, guiada. A primeira comunidade decisiva é a família, em que a relação com a mãe e o pai cimentam no seu coração o carácter único do amor paternal e a prepara para se abrir à experiência única de amar a Deus como um Pai; onde o amor dos irmãos – é tão importante que a criança tenha irmãos – lhe dá a base, a atitude fundamental para se inserir na comunidade mais alargada, quer na Igreja, quer na sociedade.
            Na comunidade que a faz viver, a criança não é apenas beneficiária. Ela é um elemento decisivo da solidez e da autenticidade dessa comunidade. Isto é particularmente verdade na comunidade familiar, em que as crianças podem ser decisivas na construção dessa comunidade, a começar na comunhão esponsal dos esposos que são pais, que descobrem nos filhos o elemento de coesão do seu próprio amor, que nunca mais poderá ser julgado só a partir de dois, mas a partir da comunidade que formam com os filhos.
            Este é o aspecto mais dramático das famílias desfeitas. Quando um casal se separa, tomam essa decisão só a partir de si mesmos, sem terem em conta os filhos, membros de pleno direito da comunidade familiar, para os quais se procuram soluções, que nunca substituem a perda da comunidade da vida.
            Mas o que se diz da descoberta da vida em geral, pode igualmente afirmar-se da descoberta da fé, que só se pode fazer em comunidade crente. A Igreja é para o crente o que a família é para a criança. Ser crente descobre-se e experimenta-se na comunidade que a Igreja é. A isso chama-se, na fase da nossa “infância espiritual”, iniciação cristã. Só em Igreja se descobrem os horizontes da santidade, aí se recebe a força e a luz para construir a vida, daí se parte e se é enviado, sempre com um novo ardor, a anunciar Jesus Cristo, o irmão que nos conduz na descoberta do amor paternal de Deus. Realmente, quem não tiver um coração de criança, que precisa de caminhar com os outros, nunca perceberá a Igreja.
 
            6. O amor ternura. O modo de a criança amar é marcado pela ternura. Na Sagrada Escritura, o amor de Deus pelo seu Povo define-se pela ternura: é um amor bondoso e misericordioso, que faz desabrochar no coração do homem a alegria de ser amado, une-o a Deus e fá-lo desejar uma intimidade cada vez maior; convida-o a amar ternamente os seus irmãos, sobretudo os mais pequeninos, pobres e desprotegidos, como o órfão, a viúva, e o estrangeiro. A ternura é um dos principais atributos do Deus de Israel.
            Jesus Cristo, Filho de Deus feito Homem, encarna a ternura de Deus num coração humano. Jesus comove-se perante as multidões abandonadas, como ovelhas sem pastor, chora diante do túmulo de Lázaro, enternece-se com a viúva de Naim, ressuscitando-lhe o filho, e diante da mulher que lhe banha os pés com perfume. O amor ternura será o sinal distintivo dos seus discípulos. Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei, ou seja, com a ternura de Deus.
            O amor da criança é um amor-ternura, também porque nela ainda não despertou a força de outros instintos de relação, e essa forma de amar faz desabrochar nos adultos que ela ama a força da ternura, tantas vezes já esquecida ou escondida. Muitas vezes, os adultos têm vergonha de ser ternos, abafam a riqueza do coração.
            A criança desafia-nos a não deixarmos secar as fontes do amor-ternura. Quando a relação com os outros passa a ser marcada pelo próprio interesse, seja este de que ordem for, sexual, económico ou outro, a ternura está ameaçada. O amor-ternura é generoso, gratuito e oblativo; é contemplativo da beleza e do mistério do outro. Só a ternura nos leva à contemplação da beleza. É de ternura o amor de Cristo pela Igreja, que Ele ama como uma esposa. São Paulo convida os esposos cristãos a imitarem este amor de Cristo pela Igreja. Aliás, a experiência humana ensina-nos que é no seio da relação conjugal que a ternura está mais ameaçada, devido à força de auto-procura de que se reveste a sexualidade humana. É a ternura que dá sentido à sexualidade humana e permanece para além dela. Verificamos isso nas pessoas idosas que, quando todas as outras potencialidades humanas se foram apagando, permanecem os afectos e a ternura é a expressão de amor que os faz viver. A ternura é o amor dos corações puros e é por isso que toda a ternura, de modo particular a das crianças, anuncia o Reino de Deus. “Bem-aventurados os que têm um coração puro, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
 
            7. Primazia do simbólico sobre o racional. A harmonia entre a linguagem simbólica e a inteligência racional, na captação da verdade e na descoberta do sentido da vida, é fundamental para entrar no Reino de Deus, ou seja, para compreender a Igreja e ter acesso à sabedoria. Na vivência cristã, a expressão simbólica é tanto ou mais importante que a compreensão racional: a água purificadora e fecundante, a luz que anuncia o novo dia, o óleo que fortalece, o pão que alimenta e o vinho que alegra o coração do homem, o ósculo da paz ou as mãos dadas quando se sela um pacto de amor. Os símbolos não valem pelo peso da sua materialidade, mas pelo que significam e anunciam. A própria linguagem da beleza é mais simbólica do que racional.
            A criança exprime-se espontaneamente através de símbolos, nos seus jogos, nos seus gestos, na sua alegria. A simbólica é a linguagem com que diz a vida. Também neste aspecto, quem não tiver um coração de criança, não poderá acolher o Reino de Deus.
 
            8. E o mistério torna-se realidade. No tempo em que confessava crianças, uma das coisas que me encantava era verificar que para elas os mistérios tinham a simplicidade da realidade. Na chamada idade adulta, também fruto de uma educação marcada pela racionalidade, esta simplicidade pode perder-se. Habituamo-nos à realidade palpável, verificável, e a realidade do mistério escapa a esse critério. A propósito da ressurreição de Cristo, dizia São Tomé: só aceitarei que Ele está vivo se lhe tocar, se meter a minha mão na ferida do seu lado.
            Passa por aqui o realismo da fé, que nos leva a aceitar a realidade dos mistérios, como aceitamos tudo o que é real. Neste processo, situa-se, tantas vezes, a nossa dúvida que é sempre uma interrogação sobre a realidade do mistério. Uma criança não tem dúvidas de fé. Para ela, o colo de Deus é tão real como o colo da mãe. É um erro retardar a vivência dos grandes mistérios como a Eucaristia, a Confirmação, relegando-os para um tempo em que a incerteza e a dúvida começam já a perturbar o coração do adolescente. É que essa adesão à realidade do mistério e a sua vivência simples é experiência que ficará para a vida. Também aqui, quem não tiver um coração de criança não poderá acolher o Reino de Deus.
 
            A infância espiritual
            9. Estas atitudes são constitutivas da fé como acolhimento do Reino de Deus. O que é espontâneo na criança tem de ser cultivado toda a vida, defendido de perigos e ameaças, acalentado na beleza de um ideal e na força de um desejo, enraizado em nós pela acção amorosa do próprio Espírito de Deus. Esta ideia de que quem não tiver um coração de criança não poderá acolher o Reino de Deus, originou uma corrente de espiritualidade, chamada “infância espiritual”, interpelação forte para quem quer viver esse Reino de Deus em tempos tão complicados, tão distantes da simplicidade de uma criança.
            Como toda e qualquer espiritualidade, é uma compreensão harmónica e global dos caminhos da fé. Encontramos os seus fundamentos na Sagrada Escritura, tanto do Antigo como do Novo Testamento, atravessa toda a história da Igreja, encontra exemplos fortes em figuras de grandes Santos como Francisco de Assis, O Cura d’Ars ou Teresa de Lisieux. A esta, devemos a sua actualização nos tempos modernos. Esta via da infância, há muito praticada, ganha vigor e atracção com a publicação da “História de uma Alma”. Teresa não lhe chama “via da infância”, mas “sa petite voie”, ou “sa petite doctrine”. O Papa Bento XV diz de Teresa: “uma vida toda caracterizada pelos méritos da infância espiritual. Ora esse é o segredo da santidade (…). Desejamos que o segredo da santidade da Irmã Teresa não fique escondido a nenhum dos nossos filhos”[4].
            Não admira, pois, que se procure em Santa Teresa a compreensão global desta corrente de espiritualidade. O Dicionário de Espiritualidade afirma: “reduzida aos seus traços essenciais, a infância espiritual, tal como se exprime na vida e nos escritos de Santa Teresa, pode definir-se como uma humildade fundamental, vivida por uma alma filha de Deus, ou como um abandono absoluto nas nãos do Pai, de uma alma que tem consciência da sua pequenez e da sua impotência radical”[5].
            Mas demos a palavra a Santa Teresa do Menino Jesus. Alguém lhe pergunta o que é que ela entende por “permanecer criancinha diante de Deus” e ela responde: “É reconhecer o seu nada, esperar tudo do Bom Deus, como uma criancinha espera tudo do seu pai; é não se inquietar com nada, não querer ganhar nada. Mesmo entre os pobres dá-se à criança o que lhe é necessário, mas quando crescem, o seu pai já não os quer alimentar e diz-lhes: agora trabalha, podes sustentar-te a ti mesmo. Foi para não ouvir isso que eu nunca quis crescer, sentindo-me incapaz de ganhar a minha vida, a vida eterna do Céu. Assim fiquei sempre pequena, não tendo outra ocupação senão a de colher flores, as flores do amor e do sacrifício e de as oferecer ao Bom Deus para Lhe dar prazer (…). Ser pequeno é ainda não atribuir a si mesmo as virtudes que praticamos, crendo-se capaz de alguma coisa, mas reconhecer que o Bom Deus põe este tesouro da virtude na mão do seu filhinho, para que se sirva dele sempre que precise; mas é sempre o tesouro do Bom Deus. Depois é nunca se desencorajar com as suas faltas, porque as crianças caem muitas vezes, mas são muito pequenas para se magoarem muito”[6].
            A infância espiritual, a “petite voie”, é a humildade, o abandono total nos braços do Pai, é viver a vida numa confiança sem limites. É permanecendo criança, que se cresce em ordem à maturidade espiritual.
 
            10. Os traços fundamentais da atitude que estamos a designar por “espiritualidade da infância”, enraízam na Sagrada Escritura, tanto do Antigo como do Novo Testamento. No Antigo Testamento ela é caracterizada por duas atitudes perante o Deus da Aliança, e que acabam por definir o verdadeiro Povo de Deus: o ter um coração de pobre e confiar em Deus Pai, como uma criança se abandona ao colo da mãe.
            Os profetas denunciam o orgulho e a prepotência dos ricos e poderosos; ao contrário, os pobres confiam em Yahwé. De verificação sociológica, a pobreza transformou-se em atitude espiritual e em muitos textos é difícil saber se referem a indigência ou a humildade confiante. Pela boca de Isaías, Deus declara: “Aquele sobre quem lanço o meu olhar é o pobre e o coração arrependido que treme à minha palavra” (Is. 66,2). Para o pobre, Deus é o único refúgio, a sua segurança. O Povo que Deus deseja, não procura a sua força nas grandezas do mundo, mas na confiança em Yahwé. São poucos, são um “resto fiel”, mas é o povo que o Senhor deseja, um povo de pobres, os “anawim”. Esta atitude confiante dos que têm um coração pobre é bem expressa no Salmo 131:
 
“Yahwé, o meu coração não é ambicioso,
nem os meus olhos altaneiros.
Não ando atrás de grandezas,
nem de maravilhas que me ultrapassam.
Não! Eu fiz calar e repousar os meus desejos,
como  criança desmamada no colo de sua mãe.
Isarel, coloca a tua esperança em Yahwé,
desde agora e para sempre”
 
            11. Esta atitude confiante exprime-se também no total abandono ao amor paternal de Deus. A ideia da paternidade de Deus começa por afirmar-se em relação ao Povo escolhido. “Assim fala Yahwé: o meu filho primogénito é Israel (…) deixa ir o meu filho para que ele me preste um culto” (Ex. 4,22). Considerar Deus um Pai é um desafio a descobrir cada vez mais profundamente o amor que Deus tem pelo Seu Povo, um amor que se revela misericórdia, mais inclinado a perdoar do que a castigar (cf. Os. 11,8-9).
            A descoberta deste amor infinito de Deus pelo Seu Povo, fundamenta a primeira manifestação da fé de Israel, a confiança sem limites nas mãos de Deus, como uma criança nos braços de sua mãe. A total confiança da criança surge como imagem sugestiva: “Sião dizia: Yahwé abandonou-me, o Senhor esqueceu-me. Mas pode a mãe esquecer-se do seu filhinho, pode ela deixar de ter amor pelo filho das suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, Eu não me esquecerei de ti” (Is. 49-14-15).
            Esta atitude de total abandono ao amor paternal de Deus torna-se ideal para cada membro do Povo, atitude definitória do “justo”, aspecto claro na oração dos Salmos. “Se meu pai e minha mãe me abandonarem, Yahwé me recolherá” (Sl. 27,10).
            Esta mesma imagem serve a Isaías para anunciar um Povo novo, fruto inaudito do amor de Deus: “Assim fala Yahwé: farei correr para Jerusalém a prosperidade como um rio, e as riquezas das nações como torrentes que transbordam. Os seus bebés serão levados ao colo e serão acariciados sobre os joelhos. Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vou consolar-vos; em Jerusalém sereis consolados” (Is. 66,12-14).
            Israel é, assim, educado pelos profetas para cultivarem uma relação com Deus, centrada na experiência da ternura de um Pai, que gera a confiança e abandono. De Deus espera-se tudo o que nos salvará. O abandono da criança e a confiança do pobre são símbolos de uma relação com Deus baseada na confiança. No entanto, estes dois temas, a confiança do pobre e o abandono da criança, no Antigo Testamento, são temas paralelos. Será na mensagem de Jesus que eles se encontram, definindo a verdadeira atitude do coração para acolher o Reino de Deus[7].
 
            12. O Povo que Deus deseja, anuncia-o Jesus no tema do Reino de Deus; as atitudes que o caracterizam aplicam-se tanto ao novo Povo de Deus como aos discípulos de Jesus. A pobreza do coração e a simplicidade confiante da criança sugerem, na pregação de Jesus, a mesma característica fundamental do Reino de Deus, que só os pequeninos acolhem; os grandes deste mundo são incapazes de perceber. Em Mt. 11,25-27, Jesus resume esta natureza profunda do Reino de Deus: “Eu Te louvo, Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do Teu agrado. Meu Pai entregou-me tudo a Mim. Ninguém conhece o Filho, a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o Filho O quiser revelar”.
            Trata-se da revelação do mistério do Reino de Deus, e Jesus fá-la a partir da sua própria experiência de intimidade filial com o Pai. Esta confiança filial acompanha Jesus em toda a sua vida. Ele faz a vontade do Pai, ensina o que aprendeu com o Pai, vai para a Casa do Pai fruir da glória que Lhe pertence, quem O vê, vê o Pai, Ele e o Pai são um só. Entrar no Reino de Deus é imitá-lo nessa intimidade filial, ser discípulo é ser como Ele. Maravilha-se e dá graças ao verificar que não são os orgulhosos e convencidos das suas capacidades, como os fariseus, mas os pequeninos que acolhem o Reino de Deus.
            Os pequeninos, em grego “nêpioi”, são tanto os pobres como as crianças, que se encontram na simplicidade da confiança e do abandono; a palavra significa criança pequenina, que ainda não sabe falar, que depende em tudo do amor dos pais. Não admira, pois, que perante crianças, Ele diga que o Reino de Deus pertence a quem é como elas (cf. Mc. 10,13-16)[8]. Isto só pode querer dizer que Jesus se reconhece, na sua relação de abandono ao Pai, naquelas crianças. E por isso diz que quem quiser ser seu discípulo tem de ser como elas.
            Estes pequeninos a quem é revelado o Reino de Deus, são os bem-aventurados no Sermão da Montanha, a nova Lei, a Carta Magna do Reino de Deus. E quem são eles, os que percebem o Evangelho do Reino? São os que têm um coração pobre, são os mansos e humildes, com coração doce, são os puros de coração, os misericordiosos; mas são também os pobres, os aflitos, os famintos, os perseguidos (cf. Mt. 5,1-12). Afinal, os verdadeiros pobres são os que têm um coração de criança.
 
            A abertura ao Reino de Deus na sociedade contemporânea
            13. No ensinamento de Jesus são claras as atitudes de coração que levam ao acolhimento do Evangelho do Reino. No contexto da sociedade judaica do tempo de Jesus, nota-se um confronto claro entre esta candura de um coração confiante em Deus nosso Pai, e o fariseísmo. Este valoriza o cumprimento da Lei como caminho de salvação; esta estava ao alcance do homem, da sua capacidade. A Deus restava reconhecer a virtude dos “justos” e recompensá-la. Um fariseu confia mais na sua capacidade do que na entrega confiante ao amor misericordioso de Deus. A atitude dos pobres, dos puros de coração, das crianças, não era valorizada; eram, porventura, marginalizados. Jesus verbera os fariseus com a mesma veemência com que valoriza os pobres de coração: “ai de vós escribas e fariseus hipócritas”.
            No seu conjunto, a sociedade contemporânea assemelha-se mais aos fariseus do que aos “anawim”, os que confiam em Deus com um coração puro. A euforia da razão tornou o homem orgulhoso, convencido que tudo pode e é capaz de tudo resolver; a ânsia de poder, a busca do dinheiro, a euforia do sexo, atrofiaram a candura da criança que habita em cada um de nós. Há, no entanto, um “resto fiel”, visível na Igreja do Senhor, cujos membros são chamados a ser discípulos, o que só é possível com um coração de criança.
            As crianças são uma interpelação para os adultos: é preciso escutá-las, tomá-las a sério. Quantas vezes elas são na vida de pessoas, devoradas pelas urgências do mundo, a única mensagem de beleza e simplicidade que nos podem abrir para o Reino de Deus. É preciso tomar a sério as crianças e a mensagem de vida que nos comunicam. Era a atitude de Jesus: “quem acolhe uma criança por causa do Meu Nome, é a Mim que acolhe” (Mt. 18,5).
            É preciso defender as crianças do espírito do mundo. A sociedade contemporânea é capaz, não apenas de desconhecer, mas de corromper e violentar as crianças. Ai de quem escandalizar uma criança, avisa Jesus (cf. Mt. 18,6.10). Isto interpela a sociedade a conceber a convivência com crianças, aquilo a que chamamos educação, a partir da criança e não do adulto. É sobretudo no seio da família que esta convivência é mais verdadeira. A criança leva os pais a reencontrarem a criança que está neles, na prioridade dada à ternura que transforma todo o amor, a confiarem um no outro e em Deus, saindo da sua auto-suficiência, a captarem na vida a sua carga simbólica, carregada de mensagem, a confiarem mais do que quererem resolver tudo sozinhos. O Reino de Deus é para viver já neste mundo e semeia em nós o desejo de eternidade. É por isso que é bom desejar morrer com um coração de criança, abraçar a “irmã morte” com a simplicidade com que se abraçou a vida.
 
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

[1] “Manuscrits autobiographiques, pg. 46

[2] Ibidem, pg. 29-30

[3] Ibidem, pg. 39

[4] “Enfance spirituelle”, in Dictionnaire de Spiritualité, Tomo IV, pg. 710-711

[5] Ibidem, pg. 682

[6] Ibidem

[7] Ibidem, pg. 683-687

[8] Ibidem, pg. 687-690


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