06 de março, 2009

9º mandamento: castidade de pensamentos e desejos
(aos organizadores de peregrinações)
 
“Os puros de coração verão a Deus” (Mt.5, 8) 
 
Vendo com os olhos e ouvindo com o coração
 
Os organizadores de peregrinações têm necessidade de ser atentos à mentalidade do tempo e ao essencial da fé. E um dos textos que lhes pode ser útil é, decerto, o de Mt.19,21. Um jovem vai ter com Jesus, e através duma pergunta que Lhe faz, revela dois motivos de auto-satisfação: é bom de coração (‘cumpro tudo isso desde a minha juventude’) e é rico de bens (pondo nisso a sua segurança). Jesus, por sua vez, faz-lhe uma proposta que o deixa surpreendido e a pensar, pois, em vez de lhe dar os parabéns, convida-o a vender o que tem e a dá-lo aos pobres. E isto, como condição de O seguir e de adquirir novas seguranças (“possuirás um tesouro nos céus”).
Claro que só Jesus pode fazer uma proposta destas. Mas quando se ajuda alguém a desprender o coração das coisas triviais e rotineiras, presta-se um serviço, possibilitando ver mais longe e, porventura, mais alto. E, no caso duma peregrinação, a convivência espiritual do caminho, o contacto com os lugares santos, a liturgia celebrada e vivida, e algum momento pessoal de intimidade com o Senhor…fazem apetecer outros momentos assim. Depois, o regresso a casa estimula a gratidão e amplia as amizades, até uma próxima oportunidade que, geralmente, fica já na intenção.
O Papa João Paulo II, quando Bispo de Cracóvia, organizava duas ou três peregrinações por ano. E a intenção era a mesma. Simplesmente, tinha em conta os distraídos da fé e aqueles que só eram sensíveis a momentos extraordinários de prática religiosa. Desta feita, procurava mexer no coração das pessoas e fazia catequese por contágio, dando oportunidades a quem as não procurava. Pois, além dos que são assíduos e sentem necessidade, há os outros que se afastam ou não têm quem os atraia. E, quem organiza peregrinações, deve ter tudo isto em conta.
Mas voltemos ao jovem que vai ter com Jesus. Ele leva consigo uma consciência de que as bênçãos de Deus estão ao alcance do homem. Um pouco como no ‘paraíso’, a coberto da tentação da serpente: “sereis como Deus” (cf.Gên.3, 5)! Simplesmente, quando o ‘eu’ humano se antepõe ao poder de Deus, acaba por experimentar as ilusões da sua própria debilidade. E, então, a fé já não encontra nos bens deste mundo um apoio proveitoso, mas o descontrole do caminho que se mostra ora lúcido ora confuso e sem horizonte. E, daí, a sensação de nudez em Adão e a decepção daquele jovem que misturava a segurança e a bênção, em ser rico e em cumprir a Lei. Por isso, esperava, pelo menos, a complacência do Mestre, diante dos circunstantes. Como não aconteceu assim, retirou-se triste e voltou a rezar, como de costume: ‘obrigado, porque eu não sou como os outros’: se sou rico é porque cumpro! A oração, porém, que justifica, diz doutro modo: ‘Tende compaixão de mim, Senhor, porque sou pecador’! Assim, os frutos da peregrinação não derivam de chegar até ao Santuário ou de cumprir as promessas; mas de se deixar envolver pelos apelos duma fé agradecida e suplicante e pela comunhão vivida e participada da Liturgia com todos. Doutro modo, não chegamos a esconjurar os medos e as desconfianças do tempo. Consegui-lo-emos, se soubermos abrir o coração às inspirações do céu, como fizeram os Pastorinhos, atraídos pelo afecto e tocados pela mensagem de Nossa Senhora.
 
Purificar o coração é pôr em Deus a nossa confiança
 
Uma das coisas que mais empobrece o coração, é deixá-lo saturado com as preocupações do futuro. Pois, fica-nos a sensação de que tudo depende de nós e que Deus pouco tem a ver com isso. E, no entanto, se o espaço celeste e todos os astros fossem olhados por este prisma, acontecia pior do que a actual ‘crise’ mundial económico-financeira! Por isso, Jesus tinha outra compreensão da vida, fazendo-a depender da vontade de Seu Pai, como um ‘projecto’ que se alcança com docilidade e esforço. E, assim, media tudo por esta auscultação: “Pai, qual é a Tua vontade”? – pois, sabia que a perfeição da Sua vida, da casa familiar de Nazaré e do ‘discipulado’ terreno (em Igreja), encontrava, por essa via, o melhor caminho e atingia a ‘obra perfeita’, como dirá mais tarde S. Tiago. E a que corresponde tudo isso? À ‘santidade’, porque Deus é Santo (“Sede santos, como o vosso Pai do céu é santo”!). Assim, os baptizados fazem parte duma ‘escola’ que tem por Mestre Jesus e por lição a santidade. E como a confiança nunca pode estar ausente, foi-nos dito que rezássemos assim: Pai Nosso que estais nos céus! Ora, um coração dócil e atento, mantém puros os ‘pensamentos e os desejos’, procurando perfumar o ambiente de fraternidade.
Neste horizonte, encontramo-nos com o pensamento de Paulo, após a visão que ele teve, a caminho de Damasco: a partir de agora (refere-se à Ressurreição de Jesus), não há judeu nem grego, homem ou mulher, escravo ou livre…porque Deus é de todos e todos são filhos, no Filho de Deus. E, assim, viu as cancelas do Judaísmo abertas ao mundo pagão e as promessas antigas acessíveis a todos. Pois, já não olhava o futuro pela visão estreita da Lei ou da interpretação que lhe davam; mas, antes, o céu aberto, como Estêvão no martírio e a casa do Centurião romano iluminada pelo Espírito Santo, segundo o testemunho de Pedro. Era caso, então, para Paulo perguntar também à Igreja: quem somos nós, para nos opormos a Deus? Deixai-me, entretanto, perguntar doutra maneira: quem somos nós para ficar presos a preconceitos miudinhos, deixando de purificar a memória ou de rezar com todos: Pai Nosso? Na realidade, o mundo plural em que vivemos, exige de nós um baptismo consciente e uma responsabilidade de apóstolos. Exige, também, convicção de fé, que não se deixa embrulhar no ‘tanto faz’ da moda nem abre levianamente as portas ao reducionismo das seitas. Pois, saber transformar os ambientes, a partir de corações renovados e purificados pela fé…e criar oportunidades que alertem os distraídos e dêm aos praticantes entusiasmo fecundo… - é jeito de viver o Evangelho e carisma apostólico dos organizadores de peregrinações.
Todavia, Deus não se sente condicionado pelas nossas estratégias. Por isso, mais do que calcular resultados ou angustiar-se com as desafinações do caminho, é preciso confiar e suscitar confiança, repartindo tarefas e responsabilidades. E é preciso, também, dispor a viagem ao encontro do essencial, dialogando o caminho entre a oração, o canto e o silêncio, a fim de criar uma disposição favorável à experiência da fé. Com efeito, se somos felizes porque acreditamos na vida eterna, essa é a verdadeira peregrinação e equivale a um acto de fé. Tenhamo-lo em conta, para não dispersarmos as atenções. Pois, uma peregrinação não é uma excursão. E convém que todos se dêm conta disso.
É certo que há peregrinações de caris mais cultural e, até, com momentos de lazer e as habituais compras. Mas sendo ‘peregrinações’, é preciso que toquem o essencial e ensinem a rezar a vida. Pois, tanto a liturgia (com a homilia bem cuidada) como outros gestos e ensinamentos, devem ajudar a assumir ‘compromissos’ e ‘atitudes de vida’, que não fiquem pelo periférico. Doutro modo, o coração fica surdo aos apelos da fé e não ajuda a purificar os instintos, no sentido de dignificar a vida.
 
Lembrando o ‘sermão do monte’
 
Passemos agora ao ‘Sermão do Monte’, percebendo como a pureza de coração nos permite ver a Deus e ver tudo em Deus. Pois, no seu conjunto, as bem-aventuranças exprimem uma mensagem de esperança e de estímulo, em ordem a desvendar a proximidade do ‘reino’ e a desejar a sua vinda definitiva. E, em cada uma das bem-aventuranças, existe uma tensão entre a situação presente e aquela que está para acontecer. Com efeito, o reino torna-se germinalmente presente, nos pobres, nos humildes, nos misericordiosos, nos puros de coração…a ponto de a situação mudar radicalmente, uma vez que Deus se propõe instaurar definitivamente o mesmo reino.
Daí, que as expressões de alegria manifestadas por Jesus, quanto à chega do reino e à libertação que o acompanha, tenham sido acolhidas pelas primeiras comunidades como orientações voltadas para a ‘conversão’ e para a ‘mudança de vida’, exigidas por semelhante acontecimento.
O evangelista Mateus, a quem me refiro, apresenta Jesus na montanha - lugar tradicional das manifestações de Deus, no Antigo Testamento; e mostra-O sentado, isto é, em atitude de ensinar. Pois, o ensinamento é uma atitude característica de Jesus, que os discípulos só poderão assumir, depois de Ele lhes aparecer ressuscitado.
E quem são os principais destinatários destes ensinamentos de Jesus? São os discípulos do mesmo Jesus histórico e os membros das comunidades cristãs de todos os tempos que, com Ele, formam o ‘Jesus pleno’ de sempre.
 
Por sua vez, o evangelista Lucas tem um discurso mais breve e situa-o na planície. Pois, acha que a montanha é o lugar da visão/transfiguração e da oração, onde Jesus se encontra habitualmente só ou, quando muito, acompanhado de alguns discípulos mais próximos. E se a multidão se aproxima e as curas acontecem (como aliás em Mateus, quando Jesus descia da montanha), a diversidade dos ouvintes deixa adivinhar a imagem da Igreja futura. E as palavras de Jesus alcançam uma plena actualidade, sempre que nós as escutamos comunitariamente ou dirigidas a cada um.
Simplesmente, o carácter exortativo do discurso, adquire uma forma pessoal (“vós”) que perpassa todo o sermão chamado da ‘planície’. E à semelhança de Jesus, também Lucas manifesta um interesse social pelos pobres, que são, afinal, os destinatários das bem-aventuranças. Pois, os que têm fome, os que choram, os que são perseguidos…correspondem às situações concretas vividas pelos pobres. Ora, a salvação anunciada por Jesus manifesta uma compreensão existencial, muito diferente da que predomina neste nosso mundo! E se já o Antigo testamento havia anunciado que Deus havia de intervir a favor dos oprimidos (Is.49, 9.13), cujos gritos de súplica se ouvem frequentemente nos Salmos (Sl.72, 107, 113)…tais promessas acabam, agora, de se cumprir em Jesus Cristo.
 
É certo que antes do “sermão” chamado da montanha ou da plancie, Jesus ia desfolhando expressões equivalentes às bem-aventuranças. Por exemplo: “se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos céus”…“Vinde a mim que sou manso e humilde de coração”…“Sede santos como o vosso Pai do céu é santo”… “Quem não renascer de novo não entrará no Reino dos céus”…e outras com igual inspiração. Ora, esta espécie de pétalas semeadas pelo caminho além, podem criar um ambiente favorável aos peregrinos, sugerindo o conteúdo das bem-aventuranças e desprendendo o coração das coisas passageiras e terrenas. E tudo isto purifica o homem ou faz dele o chamado ‘homem espiritual’. Foi o que aconteceu com a peregrinação de Jesus, de Belém até ao Calvário. Por isso, quando a multidão O ouviu proclamar as ‘bem-aventuranças’, pôde medir a Sua estatura moral e repetir convictamente: “fez bem todas as coisas”! E isto sugeria o discipulado que a Igreja, mais tarde, havia de estender a todo o mundo.
 
Um episódio surpreendente e modelar
 
Convido-vos, agora, a caminhar até Cesareia de Filipe, para assistir a um exame singular. Jesus chama Pedro à parte e faz-lhe uma pergunta incómoda mas não humilhante: “Pedro, amas-me mais do que estes”? Na realidade, o que Pedro esperava, e nós também, era que Jesus lhe perguntasse: estás arrependido de Me haveres negado três vezes…de ter fugido na hora em que Eu mais precisava…e de tantas outras coisas que prometeste e falhaste? Mas a humilhação, não purifica; a humildade e o afecto, isso sim. Por isso, Jesus seguiu uma pedagogia diferente, com sabor a divino, e ao jeito de dizer: “assim como Eu fiz, fazei vós também”!
Então, Pedro expôs-se inteiramente ao ‘amor’, pondo à prova o coração: “Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que Te amo”! E, assim, pôde receber o ‘primado’, juntamente com as ‘chaves’.
Esta atitude faz-nos lembrar as palavras de Agostinho de Hipona, falando com lucidez da lucidez do amor: “Os fiéis, diz ele, devem crer nos artigos do Credo, para que, crendo, obedeçam a Deus; obedecendo a Deus, vivam como deve ser; vivendo como deve ser, purifiquem o seu coração; e purificando o seu coração, compreendam aquilo que crêem” (Fid. Et Symb.10, 25). De facto, a pureza de coração é condição prévia de ver e compreender. Mas ver e compreender o quê? O que Jesus Cristo ensinou como fundamental: que Deus é nosso Pai e os homens nossos irmãos. Daí, a oração do Pai Nosso!
Ora, de tudo isto, o Espírito Santo faz memória, para que nunca falte à Igreja a consciência do ‘hoje’ permanente e a cada um de nós o gosto da Sua graça. E é por isso que somos convidados a remar contra a corrente da moda, por força da mesma graça. E quais os caminhos preferidos? – a virtude e o dom da castidade; a pureza de intenção em ordem ao verdadeiro fim do homem; a disciplina dos sentidos e o domínio da imaginação que tornam o olhar límpido; e a oração que faz pousar a confiança no Senhor. A isto se refere, ainda, Agostinho, quando diz noutro lugar: Eu pensava que a continência dependia das minhas próprias forças…mas agora vejo que é preciso falar aos ouvidos de Deus com o coração e pousar n’Ele o pensamento com fé sólida (Conf.6, 11-20).
Assim, é caso para perguntar: porque se usa, hoje, uma consciência caprichosa da liberdade, caindo na permissividade dos costumes e na consequente mediocridade? Ou, por outras palavras: porque se dá tanto crédito à ‘autonomia laica’, subtraindo à família, à escola e a outras instâncias públicas, a autoridade moral que lhes é devida? Cultivemos os valores que perduram e demos com a vida o testemunho da nossa fé. Doutro modo, os mais novos não conseguem resistir às propostas insidiosas que lhes são feitas (igualando, por ex., a ‘felicidade’ a todas as experiências possíveis) nem ás imagens com que os cobrem de curiosidade e brio caprichoso, e os deixam nus de fidelidade, como Adão no Paraíso.
Creio bem, que os organizadores de peregrinações devem ter em conta as tendências da moda, os propósitos economicistas dos meios de comunicação social, as ofertas radicais de jogos e outras experiências…pois, tudo isto afasta do essencial e, de duas uma: ou oferece a sensação fantasista de super-homens ou o desespero da rua, com a droga como saída. E nada disso tem a ver com um coração puro, voltado para o ideal e para a virtude. Mas Deus atrai sempre, ainda que seja preciso enviar um Anjo ou deslumbrar com a beleza da Mãe do céu. Por isso, organizar uma peregrinação (e vós bem o sabeis) é mais do que traçar o itinerário e compor um guião de ajuda. É marcar objectivos de fé que preservem o que é importante nos Santuários (a participação nas celebrações, o contacto com o sagrado, a oração pessoal) e ocupe a viagem como preparação ou com gratidão.
 
Conclusão
 
Em todo o caso, e antes de terminar, gostava de tomar como protótipo, a peregrinação da Sagrada Família, ao Templo de Jerusalém. Deixai que me expresse desta maneira:
1. O Templo atraía e favorecia uma piedade popular contagiante.
2. A família participava activamente, levando os filhos consigo.
3. O diálogo entre si e com as demais famílias, tinha um efeito catequético e de verdadeira iniciação.
4. O ambiente religioso era participado activamente e a pastoral vocacional (deixai-me dizer assim) beneficiava os mais atentos, como aconteceu com Jesus.
5. O discipulado surgiu quase imperceptivelmente, mas com intenção divina de fazer ‘escola’.
6. E os pais perceberam que o ‘Filho’ também ensinava, embora não abdicassem da sua missão.
7. E o regresso dos três já foi um pouco diferente, mercê daquela experiência. de peregrinação
 
Será que a laicização do nosso tempo fica indiferente às peregrinações dos cristãos…ou o sentido apostólico da nossa fé olha para a laicização com indiferença e não como um desafio?
Ser cristão, no nosso tempo, é ser apenas baptizado ou exige ser apóstolo, a fim de não tropeçar na mediocridade e na presunção da indiferença religiosa?
 
Deus abençoe o vosso zelo…e que o jeito de organizar as peregrinações não subestime o apelo à participação activa de cada um e de todos…e que o diálogo verbal, cantado e rezado não deixe de estimular a responsabilidade, através da coerência de vida e do testemunho da fé.
 
 
                                                     Fátima, 7 de Fevereiro de 2009
 
                                                                 + Augusto César
 
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