13 de dezembro, 2023
Beijar a carrasqueiraIrmã Sandra Bartolomeu*É “transgénero” um termo que ainda nos soa distante como um OVNI? Cada corpo, cada pessoa, é tecido célula a célula, fibra a fibra, com ínfimo detalhe no interior de outro corpo, de um ventre, bebendo de toda a herança evolutiva do cosmos e, em particular, da história biológica, pessoal, relacional e social de uma mãe e de um pai, macho e fêmea, homem e mulher. Na materialidade do corpo plasma-se o ser; a existência ganha concretude. E ali tudo está interligado numa admirável unidade: corpo e espírito, interioridade e exterioridade, humanidade, enquanto sujeito coletivo, e individualidade, enquanto sujeito único e irrepetível. Eu não tenho um corpo, «eu sou o meu corpo», dizia o filósofo francês, Gabriel Marcel, afirmando o corpo, não como um objeto-coisa que se possui, mas como parte integrante da identidade íntima da pessoa. Só existimos encarnadamente, e a carne frágil e limitada na qual somos tem inscrita em si mesma uma vocação a ser no mundo, com e para os outros. Cada pessoa é única, mas não isoladamente, nem em absoluta independência relativamente a tudo e a todos. Querendo ou não, existimos numa imensa rede, marcados pela relação e para a relação, marcados por uma história e com influência no presente e no futuro da humanidade e do mundo. A vida e o ser foram-nos dados como dádiva não escolhida, nem merecida, e simultaneamente como uma tarefa a realizar. «O que fizeste com os dons que te confiei?», escutamos nas entrelinhas das parábolas que Jesus conta sobre a vinda definitiva do seu reino. O facto de sermos seres incompletos e em devir, isto é, em construção, torna-nos vulneráveis. E não poucas vezes, perante a insegurança, cedemos ao domínio indevido e à manipulação. E porque temos tanta dificuldade em aceitar o que somos, o corpo, o limite e a incompletude da nossa condição sexuada e frágil? Se Deus beijou com a sua presença a carrasqueira da Cova da Iria, fazendo dela o doce pedestal das aparições da Mãe de Misericórdia, o que pensar da nossa humanidade que Deus, sendo completo, amou e escolheu para encarnar, divinizando-a a partir da sua fragilidade?
* A irmã Sandra Bartolomeu é religiosa das Servas de Nossa Senhora de Fátima. |