13 de julho, 2020

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A pele de Deus

 

Naquela noite, o David, do alto dos seus cinco anos, ensinava ao irmão mais novo que, se queria pintá-lo no desenho que estava a fazer, devia usar o marcador castanho e não o marcador “cor de pele”. Intrometi-me na conversa, com o coração de pai preocupado, para tentar explicar ao David que “cor de pele” é uma paleta onde cabe um arco íris. O David não estava seguro de que eu sabia do que falava e continuou a insistir em distinguir o castanho, cor da sua pele, e a “cor de pele” que era o tom rosa-bege da pele da maioria dos seus amigos de escola. Ele até já tinha aprendido que era esse o nome daquela cor. De repente, era como se o David estivesse despido de pele. Foi preciso trazer-lhe um conjunto de lápis das muitas “cores de pele” para que ele pudesse voltar a vestir esse nome, “pele”, com que vestimos a nossa existência.

A pele diz algo do que somos. É claro que nós não somos apenas essa cobertura com que se veste a nossa biologia, mas a pele também não é apenas, nem sobretudo, cor e vestido: é sensibilidade, é toque, é arrepio de medo ou de frio, é “pele de galinha” quando a emoção nos vence, é suor do trabalho comprometido, é identidade, não por nos descrever o exterior mas por manifestar o nosso interior. É uma tragédia que o olhar apenas veja cores diferentes quando a pele é transparência de tanta vida. É uma tragédia que a cor da pele continue a ser bilhete de identidade que não ausculta a intimidade.

Falta talvez perguntarmo-nos sobre a pele de Deus. Não sobre a cor da pele de Jesus, judeu do Oriente Médio de tez escura. A única dermateologia que verdadeiramente interessa é a de saber como Deus deixa transparecer quem é. Falta-nos talvez aprender de Deus que as diferenças culturais e os folclores e as roupas e os tons de pele e dos cabelos e toda a aparência do que somos são as nossas circunstâncias que falam de formas diferentes da verdade interior que nos é comum e nos irmana de sermos criaturas de Deus e, em Cristo, filhos herdeiros de uma vida eterna. Falta-nos aprender que somos pele de Deus.

Somos pele de Deus. Nós, que nos vestimos de Cristo, somos igreja onde «não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher» (Gl 3,28), não há preto nem branco, não há direita nem esquerda, não há conservador nem liberal. A pele com que Deus se manifesta hoje ao mundo tem a cor desta igreja que é um mar de gente de todas as cores de todos os cantos da terra chamada a ser «um só em Cristo Jesus». É precisamente por isso, porque é pele de Deus, que a igreja não pode deixar de se comprometer na luta contra a injustiça dos que absolutizam as cores para não terem de se incomodar a sentirem-se irmanados; é por ser pele de Deus que a igreja não pode deixar de gritar, com a voz do profeta, que a pele das mulheres e dos homens é casca de uma intimidade que é graça e bênção de Deus; é por ser pele de Deus que a igreja não pode deixar de anunciar a boa notícia da festa de Deus num caleidoscópio tanto mais rico quanto mais colorido. Gosto de pensar que, sempre que teimamos em pintar a pele na monotonia de uma cor só, Deus tem o mesmo coração de pai preocupado que eu tinha diante do marcador castanho do David.

 

Pedro Valinho Gomes, Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia

(In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1174, 13 de julho 2020)

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