13 de junho, 2020

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A inquietante fortuna crítica da Imagem de Nossa Senhora de Fátima

 

Não raramente, encontramos amplificadas apreciações acerca da Imagem de Nossa Senhora de Fátima, surjam daqueles que a ela se encontram ligados por uma relação devocional, surjam daqueles que para ela olham apenas como peça artística. A sua inquietante eficácia comunicacional fez aparecer múltiplas justificações para o entendimento, muito plural, daquela escultura tomada como a vera-efígie da Virgem de Fátima, muitas vezes olhada como peça de beleza superior, muitas vezes olhada como peça desenquadrada dos cânones artísticos da época da sua criação. A comunidade artística, e não só, tende a desvalorizá-la, alimentando muitas vezes essa desvalorização com o mito — rotundamente falso — de que aquela peça resulta de um concurso artístico do qual, mercê da incultura dos decisores, sai vencedor um santeiro em detrimento de um escultor académico; daqui surgem reações a sublinhar que a escultura é fraca, de gosto saintsulpiciano, reveladora de uma iconografia pobre e, mais que simples, simplória. A comunidade dos crentes, e não só, olha para ela como uma especial imagem da Virgem Maria e nela se revê de forma sensorial, sublinhando tratar-se de uma das mais belas imagens da Mãe de Cristo, ao ponto de ter recebido, inclusive da hierarquia da Igreja, os mais altos elogios e atenções: o papa Pio XII reconheceu-a como taumaturga; o papa Paulo VI depositou diante de si um rosário de prata; o papa João Paulo II tinha com ela uma especial relação psicológica; o papa Bento XVI interpretou as joias da sua coroa; o papa Francisco falou do seu olhar e do seu sorriso.

Contudo, o poderoso vigor da escultura criada em 1920 para veneração na Cova da Iria reside, ao contrário do que muitas vezes é assumido, na plasticidade das suas formas, bem mais complexas do que à primeira vista parecem: como qualquer obra de arte, também esta apresenta características intrínsecas e características extrínsecas à materialidade formal, fazendo acontecer sentimentos, sensações e reações transmitidas ao cérebro de quem se detém na expressão plástica de que se reveste.

Entre as características extrínsecas à sua composição formal estão todas as que derivam da história centenária que carrega, a de se ter transformado num ícone da mensagem que representa e que tanto diz a uma parte significativa da humanidade (aqui se observa a sua relação com as multidões que para ela olham e a tomam como objeto devocional que representa a entidade cultuada; aqui se observa o facto de, na sua história, ter auferido elementos visuais e simbólicos como são a coroa e a bala nesta incrustada; aqui se observa a singularidade de a imagem se encontrar sempre na sua Capelinha, numa espécie de jardim fechado sublinhado pela redoma que a protege e dignifica e, ao mesmo tempo, a afasta e apresenta aos seus devotos). Porém, essas características intangíveis derivam das formas plásticas que revestem esta específica titulatura de Maria, novidade a partir de 1917, escultoricamente apresentada a partir de 1920.

A fortuna crítica desta imagem, inquietante pela eficácia comunicacional desta peça, deve-se à complexa síntese operada pelas características intrínsecas à sua materialidade condensadoras de uma série de arquétipos que a arte mariana assimilou ao longo de séculos e que, mercê da conjuntura específica da encomenda e dos agentes que com ela lidaram, se consolidou na Imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Assim, na escultura que José Ferreira Thedim criou em 1920, com aquelas particularidades plásticas, encontra-se: a figuração da Virgem de pé, imagem da mulher de fortaleza que, junto à Cruz, se torna mãe; a representação da mulher grávida de Deus, ao modo da iconografia da Imaculada dos dias de Trento, e à maneira do arquétipo do feminino, qual figura sempre orante, de mãos justapostas em oração à altura do peito; o desenho da Torre de Marfim, espécie de coluna de brancura inexpugnável, pouco escavada, como tronco criselefantino a acentuar a verticalidade que a humanidade procura desde o tempo dos vigorosos menires; a imagem da mulher soberana que se reveste do manto e da coroa de rainha, a forma da mulher que enverga a túnica batismal dos eleitos de Cristo, também imagem da santidade e, ao mesmo tempo, imagem da esposa do Espírito revestida do traje nupcial, adornado do ouro fino que é sempre simbólico da forma como os povos interpretam a divindade; a imagem cristófora materializada pelas contas do rosário de que se faz custódia; o gesto do rosto com olhar doce e protetor, carregando, também, o sentido menos plástico, mas claramente iconológico, da “Mater omnium”.

A todos estes soma-se a novidade formal da estrela da veste, associada à “Stella Matutina”, e, acima do mais, a novidade formal de ser uma escultura “toda branca”, o mesmo é dizer, “tota pulchra” (bela, imaculada, sem mancha, no que significam estas palavras no contexto da semântica cristã), a partir da brancura das vestes — no tempo contemporâneo também interpretadas com o sentido da paz — que as imagens da Mãe do Deus dos cristãos até 1920 nunca tinham experimentado.

Como qualquer obra de arte, também esta não pode separar-se dos vários traços semânticos que, no seu todo, transporta e, esteticamente, transmite ao observador; este, inevitavelmente conclui: nesta escultura, a matéria transformou-se em arte e a arte transformou-se em ícone. Não perceber este dialético caminho — afinal comum a tantas obras de arte da história da humanidade — é não entender a inquietante fortuna crítica de uma escultura.

 

Marco Daniel Duarte, Diretor do Museu do Santuário de Fátima

(In Voz da Fátima, Ano 098, N.º 1173, 13 de junho 2020) 

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