13 de fevereiro, 2021
A caixa dos bons e a caixa dos mausPor Pedro Valinho Gomes*
Nunca fui fã dos filmes do faroeste. Sempre os achei demasiado previsíveis: há o bom, há o vilão e, depois de uma série de desventuras e volte-faces, o bom lá acaba por salvar a história no último minuto, derrotando o mau. Mas acima de tudo, sempre desconfiei desta tentação tão nossa de pintarmos o humano de preto ou de branco, de os meter na caixa dos bons ou na caixa dos maus, e de expiarmos o nosso sofrimento ou até mesmo a nossa culpa lançando pedras ao grupo dos maus. Bem sei que este é hoje o enredo padrão de tantas histórias de cinema. Mais preocupante do que isso é que se torne o enredo corrente de muito do nosso discurso político. Porque as palavras não são simples slogans atirados como bandeiras de propaganda para conquistar votos. As palavras significam coisas e fazem coisas. Quando se aponta o dedo a grupos específicos com a acusação de serem a causa de todos os males, quando se pretende justificar a nossa fragilidade económica, cultural e social ostracizando ainda mais as franjas mais frágeis da sociedade, quando o orgulho dum povo se diz com pedras a imigrantes e refugiados, sabemos que vivemos um filme do faroeste de má qualidade. Sabemos também que as palavras não passarão sem deixar feridos. É irónica a nossa falta de memória coletiva. Se ainda nos lembrássemos do que se passou, por exemplo, nos anos que precederam o genocídio no Ruanda, em 1994! Durante meses a fio, anos até, os perpetradores colocaram na caixa dos maus todos os que pertenciam à etnia Tutsi, simplesmente porque pertenciam à etnia Tutsi. Chamavam-lhes inyenzi, «baratas». Mais do que uma linguagem codificada, a alcunha tinha o efeito perverso de gerar na comunidade uma imagem das vítimas como seres não-humanos. Um processo semelhante se deu na Alemanha Nazi: os deficientes, os homossexuais, os Judeus e outros grupos minoritários foram todos sucessivamente identificados pela sua caracterização específica e colocados na caixa dos maus, pretendendo-se, de alguma forma, formular a ideia coletiva de que a sua especificidade seria uma demonstração de uma espécie de desumanidade e que era desses não-humanos a culpa de todos os seus males. Depois, foi só fechar essa caixa da desumanidade, colocá-la à entrada da cidade e destruí-la aos olhos de todos, sem que ninguém já se importasse. Afinal, nem eram bem humanos! Mais irónico ainda – trágico mesmo! – é que este ressurgir do discurso do ódio no âmbito político se dê também, hoje como ontem, em meios cristãos. Ressuscitamos rituais do bode expiatório, sacrificando a um deus desconhecido grupos inteiros de irmãs e irmãos, para, num laivo de puritanismo, nos congratularmos com a nossa retidão. E embainhamos bandeiras com gordos dizeres de gente de bem que é gente de fé – Jesus saves – enquanto procuramos a vítima do nosso sacrifício. E dizemo-nos enviados por Deus a salvar a nação, enquanto ostracizamos meio povo e aqueles que nele se abrigaram. Jesus não é herói do faroeste. Quando ele passa na banca do vilão, entronado no seu posto de cobrança dos impostos, Jesus não lhe oferece desdém, mas a amizade que há de vir a tornar-se convite interior à conversão. Se ainda acreditássemos na amizade que o evangelho promove, talvez compreendêssemos que ninguém vive na caixa dos bons ou na caixa dos maus. A vida não é tudo preto ou tudo branco. Somos bem mais zebra do que pensamos. Só a amizade tem a força de salvar a história no último minuto.
* Pedro Valinho Gomes é Investigador nas áreas da Teologia e da Filosofia (In Voz da Fátima, Ano 099, N.º 1181, 13 de fevereiro 2021) |