31 de maio, 2013
![]() Como ultrapassar a falta de confiança no outro, no próprio ser humano, e no Outro que é Deus? Talvez seja abusivo da minha parte traduzir a expressão “falta de confiança” por desconfiança. Permita-me, no entanto, que dê as duas expressões por equivalentes. Creio que a sua pergunta inquire do enigma maior da vida: o seu lado sombra, tenebroso, dramático e absurdo. Desde o mais fundo da história, chega até nós o eco da odisseia da humanidade, levantando-se, corajosa, contra o que quer que seja “o inimigo” da vida, que ameaça, que faz medo, mas que também desperta a coragem, e incentiva à não resignação. Um fio de confiança e de esperança permitiu que o planeta terra chegasse à sua realidade atual e que a humanidade ganhasse as batalhas milenares contra o infortúnio, contra a ignorância, contra o mal, contra a morte. À custa de muita dor e muito sofrimento. Sim, certamente. Tantas vezes a esperança por um fio mas, mesmo assim, um fio de esperança; um fio de vida, testemunhando que a vida não é para a morte e que o ser humano é o guardião e cuidador da vida, abrindo a concretizações sempre novas e a novas plenitudes. Chegam até nós narrativas de origem, fruto da sabedoria dos humanos que nos precederam e que, através delas, exprimem o modo como interpretam e lidam com a vida nas suas luzes e sombras, claridades e enigmas. Narrativas deles e de nós, na medida em que nos reconhecemos, por exemplo, no confuso modo de Adão e Eva se relacionarem com a realidade: consigo mesmos, entre si, com o mundo natural e com Deus; narrativas deles e de nós, na medida em que nos reconhecemos na trágica fraternidade de Caim e Abel; narrativas deles e de nós na medida em que nos reconhecemos na multidão que conduziu Jesus de Nazaré ao calvário e permitiu e permite incontáveis calvários – milénios de histórias crucificadas. Fechamo-nos ao outro, porque temos medo: que o outro nos domine, que ele nos ofusque, que ele afete de modo negativo a nossa identidade e os nosso estilo de vida. Fechamo-nos ao outro porque não confiamos: não o reconhecemos à altura de uma relação fiducial, de um compromisso existencial para além do institucional e do juridicamente enquadrado. Desconfiamos e a desconfiança sistemática pode levar à fragmentação da comunidade, à desvinculação, à fratura da relação e, no limite, à autodestruição do humano. Como ultrapassar? Quem me dera saber. Este é o segredo mais bem guardado da vida; e no entanto… diz-se por vezes que o lugar mais seguro para guardar algo considerado precioso é o óbvio, onde ninguém se lembra de procurar. O segredo da vida está, talvez, debaixo dos nossos olhos, na própria vida; ora, esta não temos de a procurar muito; não é “alguma coisa” que esteja longe ou inacessível; não precisamos de fazer longas viagens ou de investir grandes fortunas; o ser humano é, a nosso conhecimento, a mais extraordinária concretização da vida; neste sentido, talvez não seja difícil de sustentar que o segredo da vida, da vida boa, confiante e grávida de esperança, está escondido em nós à espera de ser trazido à luz. Quando deixarmos de ter medo, seremos capazes de nos abrir ao outro sem reservas, reconhecendo-o irmão querido, companheiro que me salva da autolâtria narcísica e da solidão cósmica. Quando deixarmos de ser medo – medo para nós mesmos e medo para os outros – estaremos a aproximar-nos, certamente, do sonho do totalmente Outro, do Deus da nossa fé e da nossa esperança; o sonho de que todas as criaturas que habitam o cosmos vivam em plenitude de paz e justiça e assim glorifiquem o seu Criador. Como observa, na atualidade, o relacionamento do mundo com Deus? De entrega e confiança ou como se Deus fosse um peso e ser-se cristão fosse pouco mais que cumprir regras e rituais? Diria que, de tudo isso um pouco. Mas, antes de mais, deixe-me dizer-lhe o quanto são difíceis as suas perguntas e como ao lê-las fico quase esmagada pela abrangência e complexidade. Talvez o mais sensato fosse evitar a questão ou dizer que a resposta implicaria uma contextualização e argumentação que ultrapassam o âmbito desta entrevista. Decido tentar, não porque me reconheça um saber ou uma clarividência; não porque tenha a veleidade de pensar que o que penso é a verdade e que o que proponho à discussão é a verdade. Não tenho essa arrogância intelectual, graças a Deus. Sinto, no entanto, que o que posso dizer, não sendo a verdade, diz certamente verdade, na medida em que pretende dar conta do meu modo crente de entender, e que só emito na medida em que esteja em condições de apresentar os fundamentos em que ele se alicerça. Os diagnósticos estão feitos. A Igreja de Jesus Cristo vive a dificuldade tremenda de ser incarnação performativa do Evangelho no mundo actual. O Evangelho de Jesus Cristo não perdeu nada da sua vitalidade, nada do seu caráter impulsionador da vida, nada da sua proposta de sentido fundamental da vida, nada da sua coerência antropológica, teológica e cósmica. Jesus Cristo é e sempre será Aquele que fala aos corações cansados, frios, desorientados, desiludidos, fragilizados com a vida; fala como o amante à sua amada; seduzindo, deixando-se seduzir, incansável nas manifestações de dedicação e carinho; cego de amor por todas as criaturas que o Pai lhe confiou; por cada uma delas dando a sua própria vida, se necessário for. É este amor que é redentor; é este amor que nos salva; afeta de tal modo aquele ou aquela que se deixa amar que não há ferida que não seja curada, sombra que não se dissipe, morte que a esperança não vença. Não seria o suficiente para alimentar uma atitude fundamental de confiança contra toda a desconfiança? A Igreja de Jesus Cristo vê-se a braços com a incapacidade de expressar este “Deus que tem rosto humano”. Pouco a pouco, mas de um modo por muitos considerado irreversível, a cultura contemporânea entrou num processo de “divórcio amigável” da Igreja católica, enquanto esta vive, já desde há décadas, a grande recessão da sua fachada institucional. Há qualquer coisa que está a morrer e há qualquer coisa que nasce. É inegável. Precisamos de coragem para deixar morrer o que é mortal. Assumir a mutação eclesial – que já se desenha – sem medo, com responsabilidade, com confiança, seguros de que o seu imensurável tesouro de fé – património vivo e imaterial da humanidade – continuará séculos fora. O Deus da aliança eterna, selada em toda a plenitude em Jesus Cristo, foi, é e será sempre o Deus que está à porta e chama e se alguém ouvir a sua voz e abrir a porta Ele entrará em sua casa e cearão juntos (cf. Ap 3,20). Esta é a nossa fé; esta é a fé dos cristãos; esta é a fé da Igreja. Hoje, provavelmente mais do que em qualquer outro momento da história, a Igreja tem de cuidar do seu fundamento, cuidar de Deus e ser rosto eclesial de Deus no mundo. Mesmo que o mundo já não a convoque a isso; é a sua missão; é a sua vocação. Quais as suas expetativas em relação a esta iniciativa? Este simpósio, como todas as iniciativas do género, tem como objectivo geral participar no trabalho comum – religiões, culturas, universidades, todos os homens e mulheres que a ele se dispõe – para a inteligência da fé. Acrescem objectivos específicos definidos no quadro da vocação e missão do Santuário de Fátima e que, correndo o risco de ser redutora, poderia sintetizar em dois segmentos: a receção, a hermenêutica e a expressão da mensagem de Fátima no mundo contemporâneo, por um lado; por outro, a cada vez mais nítida definição da identidade de Fátima como lugar de sagrada abertura ao Transcendente, de celebração da fé, e de reconhecimento da peregrinação mariana e do peregrino como expressão sublime da busca incansável de Deus. Neste horizonte, assim traçado, se inscrevem as minhas expetativas. Mas há uma outra, que exprimo de modo mais subjetivo, e que muito me seduz. A expetativa de que o Simpósio seja performativo; por outras palavras, que realize aquilo que diz: Não tenhais medo. Confiança – Esperança – Estilo crente. Um tempo e um espaço onde repousar dos nossos medos, onde saborear a confiança, onde cantar a esperança no tom da fé. |