16 de fevereiro, 2009
A PEREGRINAÇÃO: OBJECTIVOS E PONTOS FORTES Conferência no encontro de organizadores de peregrinações – Fátima, 7/2/2009 1. Saudação, tema e finalidade desta conferência Quero começar por vos felicitar pela presença neste encontro e pelo trabalho que realizais na organização de peregrinações a Fátima e a vários outros santuários. Dedicando-vos a esta missão, seguramente compreendeis bem qual o significado espiritual da peregrinação e conheceis o seu valor para as pessoas e seu crescimento na fé. Coragem, pois, na prossecução desta ajuda espiritual aos peregrinos. Foi-me confiado o desenvolvimento do tema: A peregrinação: objectivos e pontos fortes. Aqui falarei, portanto, simplesmente da peregrinação e não de outro tipo de viagens, como as de turismo religioso, ainda que estas também mereçam respeito e apreço, pois põem as pessoas em contacto com os lugares religiosos, o que também as enriquece de algum modo. A distinção entre a peregrinação e a viagem de turismo religioso é que aquela tem uma finalidade de expressão e alimento da fé e da devoção, enquanto esta visa mais proporcionar uma visita, satisfazer a curiosidade e promover a cultura das pessoas. Mas a fronteira entre um tipo de viagem e o outro nem sempre é clara. Na minha comunicação, centro-me na peregrinação a Fátima, e não noutras, pelo lugar onde estamos e pela finalidade desta reunião. Não trato, como é óbvio, de tudo quanto diz respeito ao tema. Abordo os objectivos e pontos fortes inserindo-os no horizonte do significado da peregrinação e tendo em conta as especificidades de Fátima, com a sua história e espiritualidade próprias. Com esta minha conferência pretendo apenas adiantar alguns elementos para um diálogo entre todos nós, que seja enriquecedor e nos ajude a melhorar o serviço prestado aos peregrinos que conduzimos até aos santuários. 2. A peregrinação, uma “santa viagem” Todo o homem é um ser em caminho. Esta sua característica exprime-se e alimenta-se quer na viagem existencial de cada pessoa, que percorre um itinerário ao longo do seu tempo de vida com todas as vicissitudes que o marcam, quer nas múltiplas viagens que ela realiza pelas estradas do mundo, por necessidades e interesses vários. Um dos motivos para a viagem é a fé. O homem põe-se ao caminho à procura de Deus ou atraído para o encontro com Ele, como diz uma inscrição na basílica de S. João de Latrão, em Roma: Tu atraíste-nos para Ti, Senhor, e inflamaste os nossos corações. Quando o peregrino parte movido pela fé, animado de verdadeiro espírito religioso, em resposta a um apelo e impulso divinos, então podemos dizer que ele faz uma “santa viagem”. Com o seu acto adora a Deus, põe-se à escuta da sua voz, manifesta o seu amor e a sua fé para com Deus e cultiva a sua espiritualidade. Este tipo de viagem, a peregrinação religiosa, é uma constante na história da humanidade e da Igreja. É motivada pelo fascínio exercido pelos lugares santos ou pela esperança de ver satisfeito algum desejo ou aspiração pessoal, de natureza espiritual ou de outro âmbito, como, por exemplo, a saúde. Frequentemente, o peregrino leva no coração a gratidão por alguma graça alcançada ou o desejo de cumprir determinada promessa que fez a Deus ou ao santo da sua devoção. Normalmente, os santuários são a meta das peregrinações religiosas. Eles surgem na sequência de alguma manifestação sobrenatural, como no caso de Fátima, ou resultam da iniciativa de homens fiéis, que quiseram consagrar a Deus, a Nossa Senhora ou a algum santo da sua devoção um determinado lugar, com a finalidade de aí prestar culto e invocar os favores celestes. Pelos acontecimentos e graças que neles se verificam, os santuários são memória viva da manifestação de Deus e das maravilhas que Ele ali realiza em favor dos seus fiéis; são também sinal da Sua proximidade e disponibilidade para os homens, beneficiados com os dons espirituais que recebem; tornam-se igualmente lugares de esperança para alívio e consolação das tribulações e anseios humanos. A peregrinação, enquanto acto religioso em direcção a um lugar sagrado, constitui um memorial dos acontecimentos e graças de Deus que nele se realizaram. Torna-se, com frequência, para muitos peregrinos, experiência da presença e acção de Deus junto dos que nele confiam. E dá corpo à súplica confiante e humilde de ajuda e acção de graças mediante atitudes, gestos e palavras. 3. Origem da peregrinação a Fátima A afluência de peregrinos a Fátima nasceu por iniciativa da Virgem Maria, que decidiu fazer uma peregrinação do Céu à Terra e aparecer aos pastorinhos, convidando-os a irem àquele lugar, durante seis meses, para o encontro com Ela. Mas, as aparições não foram apenas portadoras de uma mensagem, no sentido de declarações, apelos, advertências e promessas do Céu. Elas constituem, antes de mais, um acontecimento sobrenatural, que atingiu, penetrou e envolveu os pastorinhos, como uma luz divina. Assim testemunha a Irmã Lúcia, a mais velha dos Videntes: "Vimos, sobre uma carrasqueira, uma Senhora, vestida toda de branco, mais brilhante do que o Sol, espargindo luz, mais clara e intensa que um copo de cristal, cheio d´água cristalina, atravessado pelos raios do sol mais ardente. Parámos surpreendidos pela aparição. Estávamos tão perto, que ficávamos dentro da luz que A cercava ou que Ela espargia, talvez a metro e meio de distância, mais ou menos" (Memórias, p.156 e 158). Evocando a experiência espiritual vivida, a Irmã Lúcia conta que, quando a Senhora pronunciou as palavras ´a graça de Deus será o vosso conforto´, abriu pela primeira vez as mãos, comunicando-lhes uma luz tão intensa, como que reflexo que delas expedia, que penetrando-lhes no peito e no mais íntimo da alma, fazendo-os ver a si mesmos em Deus, que era essa luz, mais claramente que nos vemos no melhor dos espelhos (cfr Memórias, p.158). Na aparição seguinte, fazem de novo a mesma experiência: No momento em que disse as palavras ´o meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus´, abriu as mãos e nos comunicou, pela segunda vez, o reflexo dessa luz imensa. Nela nos víamos como que submergidos em Deus. A Jacinta e o Francisco parecia estarem na parte dessa luz que se elevava para o Céu e eu na que se espargia sobre a terra" (Memórias, p.162). Profundamente cativados pela bondade da Senhora e inflamados pela luz divina que lhes enchia os corações, os pastorinhos, que até então iam à Cova da Iria, para pastorear o rebanho, passaram a ir para responder ao convite da “Senhora mais brilhante que o Sol”. Entretanto, outras pessoas, tendo ouvido falar do acontecimento maravilhoso, começaram a ir àquele lugar: primeiro por curiosidade, mas também sedentas do sobrenatural e do maravilhoso que se contava sobre ele. Havia quem ia para suplicar graças para situações de aflição pessoal, familiar ou de alguém próximo; e ainda para agradecer dons recebidos e satisfazer promessas feitas. Depois das aparições, o lugar continuou a atrair a presença dos pastorinhos: para rezarem sozinhos ou acompanhar outros, que aprendiam com eles a pôr a sua confiança na Virgem Maria. A experiência espiritual vivida por umas pessoas motivava a repetição da peregrinação e contagiava outras para viverem algo de semelhante. Assim se foi propagando o interesse e o costume da peregrinação a Fátima. Desde então, não parou a afluência, pois a branca imagem da Virgem Maria, o lugar e a experiência atraem de modo irresistível. A organização e institucionalização do lugar, com a construção do Santuário e a disponibilização de sacerdotes e outras pessoas para acolherem e apoiarem os peregrinos, veio melhorar as condições físicas, a informação e as propostas oferecidas, de modo a inserir a peregrinação na acção pastoral da Igreja. 4. O testemunho de um peregrino de Fátima O que procuram os peregrinos quando se dirigem ao Santuário de Fátima? Escutemos um exemplo concreto, que é representativo do que melhor se pode desejar alcançar com uma peregrinação, em termos existencial e espiritual. António Pinto Leite, advogado e politico, numa fase de procura espiritual, escreveu num grande semanário nacional, de 4 de Maio de 1991, o artigo “Vou a Fátima”, de que transcrevo a parte que se segue: “Olho para o mundo e para os outros, para o futuro e para mim, e acho prudente proteger-me e aos que cativo com a necessidade de absoluto. Como julgo impudico esperar pela sensação da morte para procurar Deus, confio o meu coração aos seus próprios riscos. Por isso vou a Fátima, numa confusão de sentimentos unidos pela minha determinação, Vou a Fátima simplesmente porque sinto necessidade de ir e não quero aprisionar esse sentimento livre em nenhuma infatigável introspecção. Vou a Fátima porque o tempo e a razão me cercam: a esperança quer dar o lugar, parece que por sensatez, à ausência de expectativas relativamente aos outros, e eu quero resistir até o fim e merecer que outros resistam por minha causa. Vou a Fátima porque me inquieta um mundo sem espiritualidade e não quero deixar apenas às gerações futuras os rios e os mares limpos e as florestas e o lince da Malcata intactos, mas também o essencial do Homem, a alma, a sua secreta grandeza, aquilo que o distingue diante do mistério da vida e aquilo que nenhum electrodoméstico, ou automóvel, ou taxa de juro, ou cartão jovem consegue iludir. Vou a Fátima porque mesmo que Deus não exista é verdade o que se diz em seu nome, e posso regressar sem Deus, mas regresso sempre mais próximo dos outros homens. Vou a Fátima porque quem vive da memoria da fé tem uma ilusão: encontrar numa noite fria, numa multidão acreditando, no silêncio profundo dos cânticos e numa solidão corajosa, o que não encontrou nos milhares de páginas meditadas sobre a nossa natureza e o nosso destino. Vou a Fátima porque leio nos olhos do mundo e nos olhos do poder a mais perigosa ausência de fé: a falta de fé nos homens. Fé na sua generosidade e não só na sua gratidão; fé na sua capacidade de se transcender e não só na sua índole de competir; fé na sua liberdade interior e não só na sua liberdade de escolha; fé na sua ansiedade de ser e não só na sua vontade de ter; fé no seu sonho de se entregar e não só no seu talento para se organizar e se facilitar. (...) Vou a Fátima simplesmente. A fé faz-me falta, Deus faz-me falta. Escrevo-o humildemente.” (A. PINTO LEITE, Qual é o mal?, S. João do Estoril 2002, p. 38-39). Cinco anos depois, quando já reencontrara a fé cristã, graças ao “mistério de Fátima” e ao testemunho dos pastorinhos, em novo artigo para o mesmo jornal, publicado a 4 de Maio de 1996, o autor escreve: “Na semana que aí vem, irei a Fátima, a pé. Pisar o silêncio que não tenho na vida de todos os dias, para conseguir falar com Deus e não apenas comigo próprio, como nos acontece quase sempre. Parar o tempo, para ter tempo, ser ninguém para me sentir alguém, caminhar misteriosamente para perceber o sentido deste absurdo que é existir. Juntar a liberdade e a solidão e submeter-lhes a minha imperfeição. Confiar na humildade e na esperança e pôr-me à disposição da aventura que quiserem. E rezar, essa palavra que as décadas baniram, que eu bani durante tantos anos. Rezar, simplesmente rezar.” (A. PINTO LEITE, Qual é o mal?, S. João do Estoril 2002, p. 52). Aqui temos um exemplo de objectivos e expectativas pessoais ligados a situações existenciais e ao itinerário espiritual do próprio peregrino. Mas há vários outros bem diferentes destes. Ao pôr-se a caminho rumo ao santuário, a pessoa tem os seus próprios objectivos que deseja alcançar. Quem organiza uma peregrinação não pode deixar de ter em conta o que buscam as pessoas do seu grupo e proporcionar-lhes ocasiões e ajuda para que o alcancem. Mas os objectivos de uma peregrinação organizada e do Santuário que a acolhe são mais amplos. Poderíamos resumi-los neste objectivo geral: Expressar, alimentar e testemunhar a própria fé. Quer este quer outros mais específicos relacionam-se tanto com a história e espiritualidade deste Santuário quanto com a fé cristã objectiva e a missão da Igreja no mundo. 5. Características da peregrinação a Fátima O ponto de maior forte atracção em Fátima é a imagem cativante da Virgem Maria e a sua Capelinha. A branca figura de Nossa Senhora encanta e emociona as pessoas tanto no seu no Santuário como pelo mundo fora, onde quer que haja uma sua reprodução. Os fiéis aproximam-se, tocam a imagem, se o puderem fazer, rezam, fazem as suas ofertas e têm vários gestos de devoção. A Virgem Maria é o motivo central da peregrinação a Fátima. Uma outra característica é a densidade espiritual do lugar e a marca da esperança que tocam os corações e os atraem para este recinto sagrado. Com frequência, as pessoas testemunham que experimentaram algo de especial neste Santuário que não encontram em mais lado nenhum. Poderíamos dizer que o espiritual e sobrenatural toca-se em Fátima, pois há ali um ambiente especial que leva as pessoas a sentirem-se bem, encontrando a graça de Deus e a paz, através da Virgem Maria, na sua casa e como mãe que recebe com ternura os seus amados filhos. Fátima torna-se cativante também pela simplicidade da mensagem que nela nos foi dada pelo Céu. Ela é acessível a todos, podendo resumir-se no apelo materno à penitência e à oração, e no convite a confiar na Mãe do Céu que, na sua bondade, beleza e misericórdia, atende quem nela confia, especialmente quem sofre e quem procura um novo rumo para a sua vida. Neste Santuário, dá-se uma conjugação bastante harmoniosa das iniciativas espontâneas populares com as propostas do Santuário e dos ministros da Igreja, de tal modo que os peregrinos podem alcançar os seus objectivos e expectativas pessoais e, ao mesmo tempo, experimentar a comunhão espiritual com a grande família da Igreja Católica, participar nas celebrações comunitárias e ser instruído na fé pela palavra dos ministros sagrados. A oração e a penitência são as formas mais imediatas de realizar a peregrinação a Fátima. Os peregrinos praticam-nas de várias formas, associando atitudes, acções e palavras. Andar a pé longas ou pequenas distâncias, caminhar de joelhos em direcção à Capelinha e à volta desta, ofertas de dinheiro, flores, cera ou outras, o cumprimento de promessas de súplica e de gratidão, a oração do rosário e de outras preces, invocações e fórmulas constituem um leque de múltiplas expressões de fé e devoção dos peregrinos. As motivações para ir a Fátima podem ser variadas: a devoção, a fé ou a sua procura, como no exemplo do peregrino mencionado. Cada pessoa leva o seu motivo, embora o partilhe com muitos outros. Podem distinguir-se diversas formas de peregrinação: a pessoal, a que se concretiza em família, em grupo de amigos ou vizinhos, e a das multidões em determinadas ocasiões, como nos aniversários das seis aparições de Nossa Senhora. As características mencionadas dão um colorido particular às peregrinações a Fátima e imprimem certas marcas no programa que se pretende realizar. 6. Objectivos e espiritualidade da peregrinação A narração evangélica da peregrinação da família de Nazaré ao templo de Jerusalém permite-nos compreender o mais importante do objectivo e da espiritualidade desta prática religiosa (Lc 2, 41-52). Apresento duas ou três notas essenciais. O objectivo desta família era cumprir a lei de Deus, adorando-o no seu templo (cf Ex 23,16; Dt 16,16). E é Jesus quem lembra a Maria e a José, surpreendidos por Ele ter ficado precisamente no templo, que “devia estar em casa de seu Pai”, o que quer dizer também ocupar-se das coisas de Seu Pai, viver segundo a vontade divina. Com estas palavras, Ele manifesta ter clara consciência da sua identidade e da sua missão divina. Todo aquele que se faz peregrino centra-se em Deus, procura escutar e obedecer à voz do Espírito que o guia nos seus caminhos e o faz entrar na comunhão com Deus. E o fruto da peregrinação, semelhante ao que viveu Jesus, será o crescimento em sabedoria e graça diante de Deus e dos homens. Vejamos agora mais em detalhe os objectivos da peregrinação e o espírito que deve animar quem se propõe realizá-la. Para isso sirvo-me do Directório sobre a Piedade popular e a Liturgia, n. 286. A peregrinação é “momento e parábola do caminho” para a eternidade. Através dela se manifesta e se alimenta o desejo de Deus e da plenitude da vida que n’Ele se encontra. O peregrino sabe que, aqui na terra, não temos morada permanente (cf Hb 13,14), “pelo que, independentemente da meta imediata do santuário, avança através do deserto da vida em direcção ao Céu, a verdadeira Terra Prometida”, a sua Pátria e morada eterna. A experiência do caminho para o santuário aviva a consciência da transitoriedade da vida temporal e fortalece a esperança na vida eterna. No seu percurso para o santuário e na experiência espiritual do lugar santo, o peregrino faz a sua caminhada de conversão. O caminho exterior torna-se expressão e estímulo da busca interior, como muito bem o exprimiu o salmista peregrino de Jerusalém: Como são amáveis as tuas moradas, ó Senhor do universo! A minha alma suspira e tem saudades dos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne cantam de alegria ao Deus vivo! (Sl 84, 2-3). O peregrino toma consciência das suas fragilidades e culpas, medita sobre o significado profundo da vida e aquilo que nela é essencial e busca a luz e a libertação interior, que lhe permitam mudar de vida e corresponder à vocação e à graça da santidade. Algumas atitudes, gestos e práticas penitenciais ajudam a fazer este percurso espiritual. A santa viagem para o santuário é marcada também pela experiência da confraternização com os outros peregrinos, e pela festa. Na verdade, já o antigo peregrino de Jerusalém exclamava: Que alegria quando me disseram: vamos para a casa do Senhor (Sl 122, 1). Tanto ao longo do caminho como no santuário, a peregrinação proporciona, de vários modos, a “ocasião para exprimir a fraternidade cristã, para dar espaço a momentos de convivência e de amizade, para libertar manifestações de espontaneidade, quantas vezes reprimidas”. Aliam-se neste acontecimento tanto os motivos humanos de encontro quanto as graças espirituais para encher e fazer transbordar de alegria o coração dos peregrinos. O verdadeiro peregrino dirige-se para o santuário para ir ao encontro de Deus, para estar na sua presença e ali manifestar o seu reconhecimento com a adoração e a abertura do seu coração cheio de confiança e humildade. Por isso, a peregrinação é essencialmente uma acto de fé e de culto, oração pessoal e comunitária feita de atitudes, actos e palavras, em vários tons: louvor e adoração, acção de graças, cumprimento de um voto ou promessa, súplica de graças necessárias para a vida, manifestação de arrependimento, pedido de perdão... O salmista (Sl 84, 9-13) exprime muito bem a oração do peregrino nestas palavras: “Senhor, Deus do universo, escuta a minha oração, presta-me ouvidos, ó Deus de Jacob. Ó Deus, olha para o nosso escudo, põe os olhos no rosto do teu ungido. Um dia em teus átrios vale por mil; antes quero ficar no limiar da casa do meu Deus, do que habitar nas tendas dos maus. Porque o Senhor é sol e é escudo; Ele concede a graça e a glória; o Senhor não recusa os seus favores aos que vivem com rectidão. Ó Senhor do universo, feliz o homem que em ti confia! Com frequência, como é o caso de Fátima, a oração e os gestos de devoção do peregrino dirigem-se à Virgem Maria, aos Anjos e aos Santos, reconhecidos como válidos intercessores junto do Altíssimo e cooperadores através dos quais Deus derrama as suas graças sobre aqueles que as suplicam. Mediante a peregrinação, tanto durante o percurso como no lugar santo e sobretudo após essa experiência espiritual, os fiéis testemunham e irradiam a fé cristã e os seus frutos no meio das outras pessoas com as quais se encontram e pelas quais passam. Os actos, a expressão, o espírito e a fé dos peregrinos suscitam com frequência admiração em quem os observa e não raro o santo desejo de participar da mesma experiência espiritual. Assim, a peregrinação torna-se um anúncio de fé e devoção e os peregrinos revelam-se por vezes como autênticos “pregoeiros itinerantes de Cristo” (AA 14). Na sua “santa viagem”, o peregrino vive, exprime e fortalece de várias formas a comunhão com Deus e com os irmãos na fé, tanto os que caminham com ele como os que encontra no santuário e os da sua comunidade de proveniência. Esta comunhão estende-se também aos santos e aos peregrinos do passado que oraram no santuário. E também aos homens e mulheres “cujo sofrimento e cuja esperança se manifestaram variadamente no santuário e cujo engenho e arte deixaram nele múltiplos sinais”. A mesma comunhão abarca igualmente, em certo sentido, “a natureza que circunda o santuário, cuja beleza o peregrino admira e se sente levado a respeitar”. 7. Os pontos fortes da peregrinação Tendo presente os objectivos da peregrinação, quais são os pontos fortes que contribuem para os alcançar? Quais os momentos fundamentais a privilegiar na programação? É importante, antes de mais, ter em conta os seus vários momentos: partida, percurso, ritos e práticas ao longo do caminho, o(s) tempo(s), chegada ao lugar sagrado, a permanência, o regresso... Cada um deles tem o seu significado e pode contribuir para o fruto mais ou menos rico da peregrinação. A visita aos lugares das aparições, memória viva da manifestação do sobrenatural, constitui ocasião propícia para meditar nas maravilhas de Deus e deixar-se penetrar pela presença divina que se respira no Santuário. Em relação com eles, poderá ler-se uma palavra de Deus que revele o significado desses lugares, de modo a torná-los mediações da voz divina para os peregrinos. A evocação e aprofundamento da história e conteúdo das Aparições, do testemunho dos pastorinhos, e a contemplação da imagem de Nossa Senhora e de outros sinais e símbolos do que aconteceu neste lugar e o santificou permite aos peregrinos avivar a memória dessas maravilhas de Deus e, em certo modo, participar nelas e até ser tocado por elas. Outro ponto forte há-de ser a escuta de Deus e a oração, sobretudo a adoração ao Santíssimo Sacramento, evocando e interiorizando as aparições do Anjo e a respectiva mensagem, e o rosário a Nossa Senhora, para corresponder ao pedido que ela fez nas suas Aparições. Deverá ser dada oportunidade igualmente à experiência do silêncio, de modo a que os peregrinos beneficiem do seu efeito vivificante e pacificador, além de ser condição indispensável para a escuta da voz de Deus no próprio íntimo. Um lugar central deverá ter a participação nas celebrações sacramentais, sobretudo a Eucaristia e a Reconciliação, e outras acções litúrgicas propostas pelo Santuário (p. e. procissões...). Através delas os peregrinos vivem a fé da Igreja e experimentam a comunhão com ela. O encontro, a confraternização e a comunhão com os demais peregrinos não poderão faltar, pois permitem experimentar a pertença à grande família que é a Igreja. Eles dão um toque mais concreto e humano à peregrinação. No programa de uma peregrinação organizada deverá ser reservado tempo para a devoção pessoal e as suas expressões. O peregrino não é apenas membro de uma família ou de um grupo ou assembleia de pessoas. Ele tem também as suas necessidades, desejos, obrigações, anseios e objectivos pessoais. Se não lhe for dada ocasião para as satisfazer, ele retira-se do programa comum ou regressa frustrado, pois não alcançou o que pretendia. 8. O Coração de Maria, caminho para Deus Os objectivos e pontos fortes da peregrinação a Fátima, de que falei ao longo deste trabalho, podem espelhar-se, de modo concentrado, nas palavras que a Virgem Maria disse à vidente Lúcia, quando lhe indicou a missão que esperava dela após as Aparições: "Jesus quer servir-se de ti para Me fazer conhecer e amar. Ele quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração.(...) Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus" (Memórias, p. 162). De certo modo, estas palavras valem para todo os peregrinos e significam que Nossa Senhora continua a amparar todos os que procuram e encontram nela refúgio e ajuda nas tribulações e anseios da vida. Na devoção a Maria, nas suas promessas, na sua mensagem e sobretudo do seu amor materno, os peregrinos descobrem o caminho que os conduz a Deus e encontram ajuda para o percorrer. Chegar ao encontro com Deus e à comunhão com Ele é o objectivo essencial tanto da peregrinação para o santuário como da que se percorre ao longo da vida e nos orienta para a “eterna morada de Deus”. Estar com Maria, contemplar a sua imagem, escutar a sua voz no íntimo do coração, cantar os seus louvores, manifestar-lhe a própria gratidão e seguir os seus conselhos constituem o ponto mais forte da peregrinação a Fátima. Tudo tem esta marca e gira à volta deste centro. Quando é bem organizada e participada, a peregrinação torna-se para os peregrinos uma experiência espiritual marcante e feliz. Tal experiência é bem expressa pelo salmista: “O meu coração e a minha carne cantam de alegria ao Deus vivo! Felizes os que habitam na tua casa e te louvam sem cessar. Felizes os que em ti encontram a sua força, e os que desejam peregrinar até ao monte Sião” (Sl 84, 4-6). Quem dera que o mesmo possam exclamar hoje os peregrinos de Fátima e dos demais santuários. Essa alegria experimentaram os pastorinhos no encontro com Nossa Senhora e nas graças que através dela receberam. Delas deverão participar também os peregrinos do tempo presente. Bibliografia Memórias da Irmã Lúcia, Fátima 19906. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Directório sobre a Piedade popular e a Liturgia. Princípios e orientações, Paulinas, Lisboa 2003, nn. 261-287. Padre Jorge Manuel Faria Guarda |